Não sei porque, mas continuo com a sensação de que continuo sendo traído. Em meio à saga proveniente de um recalque de dimensões significativas ante a atuação seletiva da Lava Jato, sem a al-cunha evangelizadora que desejaríamos, o espetáculo contido da prisão do ex-deputado não me anima, não me alivia a alma ou me converte em apologista da cavalaria de Curitiba.
Muitos não esperavam a prisão de Eduardo Cunha e alguns mais exaltados até desejava que isso não acontecer para poder continuar a dizer "porque não prendem o Eduardo Cunha?". Mantê-lo solto era a prova cabal da seletividade, a anuência simbólica de que houve uma conspiração e a deslegitimação do golpe. Agora que deixou de ser um argumento desta lógica, passou-se a criar um novo veio de expectativas.
Agora nasce um novo horizonte em meio ao obscurantismo dos argumentos, em meio à falta de uma assunção crítica que permita entender como pensa o establishment. A partir de agora passamos a acreditar que ele vai derrubar o governo com denúncias, vai mandar para a câmara de destruição de reputações metade dos ministros e nosso Drácula, aquele que tudo teme e ainda Temer.
Esse processo de construir significados e interpretações à "esquerda" na lógica aguerrida por uma história irá per se corrigir os "erros e injustiças", ainda que parte justificados e parte de uma ao mesmo tempo frutos de uma genial e oligofrênica coalizão, continua a se alimentar de um básico pecado original: a santa ingenuidade.
Quanto mais espetacular e significativo passa a ser a prisão do Eduardo Cunha para coxinhas, petistas, alguns algozes de uma esquerda sem personalidade e de uma direita sem caráter, e ainda, da massa ignara que se desmancha em silêncio, quanto mais simbólico, mais caráter de verdade passa a ter o que esse senhor disser numa delação. Ou seja, ele pode, com meras palavras, oferecer a cabeça de São João Batista ou macular a história de Madre Teresa de Calcutá.
Pode fazer estragos de qualquer monta porque a construção do mito de que ele tem as verdades sobre as entranhas do poder, faz dele um delator exemplar e midiático. Tudo dependerá do que ele já pode ter negociado num campo em que não temos nenhum acesso sociológico que são os subterrâneos do judiciário e seus comunicantes com a política e o grande capital. De certo não oferecerá a cabeça de um outro João, o Roberto Marinho, mas vai ser um show digno de um jornalismo que leva dias para descobrir que é impossível uma lavradora do Nordeste receber 75 milhões de reais de um beneficiário do Bolsa Família.
O contra significado da prisão de Eduardo Cunha é o reverso das possibilidades do que ele tem a dizer. É exatamente o que ele não dirá em meio à um poder que tem uma expectativa de sobrevivência amparada pelos que o desejam substituir. O significado oposto não é tão exato, mas representa um jogo de xadrez que permita interpor os movimentos de abertura ao capital estrangeiro em setores estratégicos, a preparação de uma acomodação de fortalecimento dos núcleos políticos que conseguem influir melhor sobre o judiciário e a grande mídia nacional.
Eduardo Cunha estava bem preparado para a prisão. Permitiram-lhe transferir recursos, organizar arquivos e escrever a receita de um banquete de estratégias de informações que permitam sua autopreservação. Eduardo Cunha foi cerimoniosamente informado de que iriam buscá-lo gentilmente, trariam um galã junto a renovar a imagem do japonês da federal, e o guardariam com a exclusividade digna de um magnata do crime com grandes amigos entre os supostos inimigos.
Talvez, apenas talvez, porque não sou vidente, apenas um cético intuitivo, ele seja o passaporte moral que querem construir para a prisão do Lula. Porque a imprensa repete de maneira infantil o mesmo chavão moral: "a prisão de Eduardo Cunha é a prova de que qualquer um pode ser preso", e ainda "nunca antes foram presos tantos poderosos no Brasil", "o país está mudando", bla bla bla.
O contra significado meio piegas e meio maldito nesta prisão é a falsa noção de que o judiciário é independente e de que a luta contra a corrupção é a luta fundamental da sociedade. Puro equívoco de quem desconhece a lógica de governança e justiça que dá às grandes potências, uma noção de sofisticada superioridade ética, de exemplo republicano e soberania planetária.