Péricles, em sua "Oração Fúnebre", dizia que a democracia é um sistema de governo que depende da maioria e não de poucos. Seja como for, a maioria é quem faz o sistema de governo, seja através do processo eleitoral, através de más escolhas ou da inação.
Isso quer dizer que com todos "puxando a sardinha para a própria brasa", onde os consensos são voláteis e estabelecidos pela ausência de representatividade de quem a promoveu, a tendência é que a sociedade feche as caixas de diálogo e compartilhamento das diferenças, recrudesça no confronto interpessoal por meio da adjetivação agressiva e constante, e convirja para o autoritarismo como solução institucional.
Esses três eixos configuram o "pensamento único" como vontade, representação, repetição e sistema. Qualquer pensamento contrário é antinatural, primário, e uma ameça de terremoto.
Até que as crostas possam encontrar a devida acomodação, o momento atual cheira a enxofre e tragédia com ares de inevitablidade. Ou seja, aprofunda-se o desemprego, a pobreza, a miséria extrema, a queda na qualidade da educação, os maus serviços de saúde e tudo o mais decorrente do efeito dominó.
E não vejo como sair do entrevero político e econômico cataclísmico sem danos geológicos que perdurarão sobre a sociedade como um todo, por muitos e muitos anos.
O método jurídico implantado pelo MP de Curitiba, bem articulado com um juiz federal de primeira instância e setores da Polícia Federal, está se viralizando, com alguma resistência e dissensões, pelo poder judiciário Brasil afora. E incita a autofagia "corporativa" entre políticos e fornecedores públicos. Lógico que para que isso tivesse se tornado possível o ménage à trois ampliou seu leque para a segunda instância da justiça federal, a grande mídia e o Supremo Tribunal Federal. Tornou-se um ménage à six.
Nesse imbróglio nacional e internacional a pressão do MP, aliada de duras decisões judiciais, adotou uma configuração de guerra populista e prolongada, em que os fins justificam os meios. A estratégia compreende atacar com sistematicidade, buscar uma condenação prévia do investigado por parte da sociedade (e nesse quesito a mídia é um peixão guloso e glutão de espetáculo), tornar extenuante e humilhante a permanência dele na prisão (onde a disciplina prisional atua sobre o corpo), investigar contra a família do mesmo, e supervalorizar os elementos probatórios.
Para isso o Ministério Público passou a generalizar tudo como propina. Não existe mais caixa dois (formalmente passou a ser entendido como propina), doação de campanha, patrocínio, ajuda financeira, apoio material ou qualquer forma de benefício material indireto. Tudo tornou-se moeda de troca por parte de delatores que anseiam por liberdade. O Ministério Público forma convicção e a imprensa divulga essa convicção.
Também impressiona a força do ato declaratório nos acordos de delação premiada. Valores dificeis de contabilizar são divulgados sem nenhuma necessidade de comprovação. E quanto maior o número mais estupefato fica o jornalismo oligofrênico. Se o processo fala em "suspeita" de 500 milhões de reais de superfaturamento na obra tal, isso é divulgado como fato insuspeito.
Os seis parceiros (paladinos), atuando em uníssono, convenceram largos segmentos da sociedade, em especial a classe média, que a denúncia, a prisão e a intimidação são necessários para o sucesso da empreitada moral de combater a corrupção. E ainda mais. Convenceu a sociedade por meio de uma linguagem jornalística pseudo-judicialista, que é possível culpabilizar, criminalizar e condenar sem provas.
Irônica e eventualmente, alguns âncoras alertam sobre a necessidade de aguardar que a justiça condene, falam em presunção de inocência e direito de defesa. Mas são mestres em adjetivos de repulsa, asco, intolerância moral e rispidez contra qualquer citado ou denunciado pelas operações.
E os fatores chave para a prevalência dos cruzados moral foram: primeiro, a ressignificação moral da noção do Estado de Direito, a repetição de trechos das peças acusatórias que contém valores estratosféricos em contraponto a insuficiência e má qualidade dos serviços públicos, e, por fim, o voyerismo folhetinesco da produção de alvos e revolta partindo de um conluio do judiciário com a mídia. Ou seja, o mal punido custe o que custar realimenta o mal de punir custe o que custar.
Na esteira de um processo em que todos são culpados até que se prove o contrário, a autofagia tornou-se um instrumento de dissuasão, negociação, bravata, acusação, derrubada de adversários, vigança, coerção e banalização da política e do legítimo processo legal. Mesmo que alguns grandes juristas discordem disso.
Hannah Arendt causou escândalo quando em seus estudos sobre o nazismo defendeu a tese de que os "monstros" de auschwitz eram seres comuns, banais, sentavam à mesa para jantar com a família e os filhos. Quase foi linchada por isso. Onde se esperava existirem monstros e psicopatas, seres humanos terríveis e dotados de uma crueldade fácil de identificar no olhar, haviam seres tipologicamente comuns. Para muita gente tornou-se difícil entender essa análise. Tal como na idade média, os nazistas deveriam ser mortos da forma mais cruel possível ao sistema legal da época, e deveriam sofrer a experiência abrasiva da vingança.
O contexto brasileiro é muito parecido e típico dos vários contextos históricos de guinada autoritária. O "ovo da serpente" que Igmar Bergman descreveu como a tirania se desenvolve no seio da sociedade e da família, cresce e encontra respaldo a partir do aprofundamento da crise econômica e suas mazelas sociais. Mostra como parte da sociedade se converte no apoio a violência como instrumento de combate à violência. Como pessoas sãs, de família, que frequentam a igreja e tudo o mais, pessoas banais, de uma hora para outra aderem e apóiam as piores soluções e os piores sistemas de governo.
Como li de um jornalista outro dia, no Brasil, sob o argumento de combater a corrupção e defender a ética, derrubou-se um governo substituindo-o por uma coalisão de bandidos.