O convicto delegado de polícia que decidiu e qualificou que a motivação do adolescente em atirar nos amigos de classe em Goiânia foi bullyng não é um idiota. Mas comete uma idiotice amparada pelo senso comum que é considerar a partir do depoimento do jovem que a causa foi bulling. De certa forma, e mesmo considerando o ato injustificável, ele transforma o jovem atirador e sua família em vítimas da fatalidade.
O tiro fatal que atingiu o amigo nas costas, outro na cabeça e feriu quatro outros, tem um nexo causal tão fatídico quanto pertubável à nossa ordem. Como se o advento de um assassinato com essa natureza, semelhante aos que aconteceram nos EUA e em Realengo, excluindo os de natureza "política", derivassem exclusivamente da prática de bullyng.
A obviedade dessa conclusão infelizmente é uma estupidez semelhante daquela que não considera terrorista um americano ultranacionalista que sai atropelan-do uma multidão com seu carro. Se fosse mulçumano provavelmente seria um terrorista.
E chegar à conclusão que foi bullyng é um exercício de oligofrenia da ciência criminal que aprovou um pouco estudioso agente da verdade para exercer a profissão de investigador.
Mas essa conclusão não é individual e fruto do néscio intelectivo do agente policial. Ela não veio simplesmente porque alguns adolescentes informaram que o menino fora ridicularizado porque cheirava mal. Mas deriva da negação necessária de uma sociedade que tem que explicar certos "inexplicáveis" com as novas objetividades do caos contemporâ-neo.
Ela convém porque faz parte da negação de que a bala partiu de um universo maior e mais irresponsável na construção das alternativas de convivência, que é a sociedade. Assim é mais fácil justapor que a bala partiu da prática equivocada do menino que morreu.
Filho de dois policiais num momento em que a violência em Goiânia já equivale a índices de zonas de guerra, o adolescente tem uma história qualquer a desvendar. Não é tão simples atribuir ao bullyng a causa de uma reação tão pouco proporcional como a que aconteceu.
O bullyng é uma prática antiga nas escolas que passou a ser considerada, mas muito pouco enfrentada, nos ambientes pedagó-gicos. Sua compreensão e enfrentamento passa por discussões éticas complexas e envolve conflitos em múltiplas dimensões da cultura, da sexualidade, de raça e comportamento numa sociedade de classes. E tem que ser objeto de mais pesquisa e discussão.
Mas não pode ser bode expiatório isolado para atos de violência. Como a queda de um avião, os fatores causais de tragédias com essa magnitude são muitos e variados, com matrizes de violência psicosociais inovadas. Existem fatores que iniciam um processo de violência e os que decorrem do imprevisível. Não dispomos de uma caixa preta que registre instrumentalmente a forma como a violência é introjetada no microcosmo social e como se articula com as mudanças estruturais do macrocosmo.
Mas não há dúvida que há uma banalização do mal na forma como a sociedade assimila e participa do processo de violência.
O fato é que esse tipo de violência é uma decorrência fenomenológica ativa, está instalada no corpo social como um vírus e tende a se manifestar em condições específicas, às vezes estimulada por um simples bullyng. Não chega a ser uma epidemia, mas existem sinais de que aumenta sua propagação.
A verdade, no entanto, quando terrível, quando obscurecida pela simplificação e pelo conformismo, quando envolve uma rede de cumplicidade coletiva é sempre difícil de ser percebida, atribuída e enfrentada.
O resultado desse drama coletivo de Goiânia tem padrões de desespero que induz a comunidade a tirar conclusões analgésicas, a considerar o mal como um fenômeno exterior, a construir razões por evidências mecânicas, a tentar fechar essa cortina o mais rápido possível. E a "expiação" é um instrumento da ideologia a favor da manutenção das verdades inadmissíveis.
O que há por trás do gatilho que torna um jovem assassino de seus próprios colegas tem conexões com uma cultura que canibaliza a crítica radical, aquela que permitiria ir à raiz dos problemas, por meio da intolerância, da violência como assertiva, da vingança como método punitivo, do autoritarismo como saída.
Um jovem com uma arma que atira tem uma libido potencializada pela frustração e uma sensação de derrota que só pode ser superada pela extraterritorialidade da consciência. Ele emerge no ambiente de sua antifilosofia familiar. Ele extrapola o sentimento de dor que o motiva e heroiciza as consequências de seu gesto por meio do ódio.
Ele imita outro assassino, vários assassinos, transforma os últimos gestos de humilhação em motivação, resolve ensanguentar sua tragédia pessoal convertendo-a em coletiva, murmura que vai ter morte, que vai matar, se transfigura num modelo idealizado e peculiar de vingador, o antiherói de sua marvel imaginária.
Ele tem dois pais policiais, dois servidores que devem comentar em casa como funciona seus instintos perante o crime, como lidam com a injustiça do mal que se espalha como fumaça intangível, que os permeia como antinomia, que "deriva do criminoso" em si, que nasce com ele, que não é humano mas é pessoal. Há um contexto simbólico na disponibilidade da arma. Há um contexto psicológico na configuração do aspecto inumano dos inimigos na luta do bem contra o mal.
Seja como for, o adolescente se entregou ao gesto homicida como uma esponja perfeita, permeável em sua fragilidade moral, úmido em sua dissolução coercitiva, abrangente no espaço molecular de desesperança.
O ponto de emanação desse tipo de violência não é mensurável na aparência nem detectável pela exposição de suas características porque estava numa "cela" amarguradamente individual, preso na circunstância que o habeas corpus da compreensão familiar não alcança quando o elo de compreensão dos afetos são imaginários e simbólicos. Sobrexistem na negação.
O corpo e a consciência da vítima se desintegra no peso de um vazio fedorento e que o enlouquece. É preciso matar-se no outro porque ele tornou detectável sua "impureza", ele publicizou sua "insignificância" odorífera, ele desperfumizou sua introspecção colérica.
Tudo isso, de alguma forma, representa o cataclisma afetivo de quem sofria o assédio de uma indiferença existencial e afetiva, de quem já vinha se fragmentando para além dos corredores da escola. Ele era vítima de uma banalização muito maior.
Não é simplesmente bullyng.