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Pilha de compartimentos

A NAU DOS INSENSATOS


Finalmente, mas não tão finalmente, estamos saindo da normalidade do carnaval e entrando no desvario do cotidiano, dos dias comuns. Peço desculpas pela inversão de perspectiva, mas se levarmos em conta a catarse dos tempos atuais, o exorcismo do carnaval talvez seja uma forma egotecnica de levarmos nossa contradição individual ao âmago de nossa alegria mais recôndita. O amplexo desejo de esquecer qual é a atividade fim de viver na polis.


Fato é que eu, entre o ritmo invasivo do desvario e a fleuma patética da usurpação consentida, ocupo uma cabine privilegiada num "cruzeiro" repleto de piratas fantasiados. Nessa viagem compulsória me sinto meio que na nave dos loucos.


O carnaval é a minha Stultifera Navis, a "nau dos insensatos" de Foucault, para onde mandavam os loucos porque se não era possível tê-los entre nós, aqui ou acolá, a solução era prendê-los no limiar. Assim foi tratada a loucura entre os séculos XIV e XVII. A minha loucura está simplesmente em inebriar-me do cheiro de cerveja na minha calçada, alcoolizar-me da urina alheia porque o contraventor é duas vezes mais forte do que eu, e, por derradeiro, assistir da prancha a Coca Cola comprar o aquífero Guarani, a Boing tomar a Embraer e a Halliburton mamar no nosso ouro negro.


Quando a noção de verdade e o imperativo da normalidade subverte-se pela excepcionaldade da busca insistente por punição-espetáculo, caçada exortativa e alegórica no coração de um navio pirata que leva no seu mastro o espantalho da vigança e do ódio, o imperativo categórico da democracia, digo, soberania, naufraga entre as próprias razões. O totem do espantalho não foi feito para os corvos e sim para os albatrozes, pois que de além mar, suscita que atemorize nossas verdades interiores enquanto nos ajoelhamos à semiótica da hipocrisia.


A representação carnavalesca da farda do comandante, emoldurada por um quepe branco da Marinha, ou da toga do magistrado, verdes gilmares, são a parte farsesca da bárbarie intelectual de quem deseja mudanças sem pensar no Pierrô, o mais pobre dos serviçais e que agora ataca a classe média, turistas e supermercados com ímpeto canibalesco. Tudo por alguns trocados e quiçá uma Colombina que tenha crack para amenizar a vida sórdida que leva.


Em meio à névoa que cercou as galés eu não ouvia mais o retumbar das panelas nas varandas dos camarotes. Desde a queda da Dilma ou a descoberta do caminho das Indias pelo Vasco da Gama eu não escuto o tilintar das tramontinas. Apenas o vazio e a transitoriedade mórbida da passagem. E as ecoantes rajadas de AR-15 nas favelas. Apenas o barulhar das retrospectivas sem brisas e o silêncio que destoa do movimento dos remos, entre uma ou outra criança baleada. A multidão rema como o velho marinheiro, que durante o ano inteiro, insensata, baila o barco devagar. Apenas risos, lágrimas, lavajato e O Outro Lado do Paraíso.


Com essas reflexões passei meu carnaval, ao largo das ilhas não virgens de notícias de violência e pilhagem, entremeadas pelos desfiles e o ufanismo que mistura alcool e urina. O espetáculo de pano de fundo em que menores e maiores, em bandos e fantasiados de si mesmos, extasiados por um baile da qual não faziam parte, atacavam com ferocidade os habitantes da nossa ilha da fantasia, era espetacularmente coberto por jornalistas babando de sangue e indignação.

Não são personagens de ficção ou animais de outra espécie. É uma parte do povo que muitos paneleiros querem lançar na stultifera navis, abandoná-los no oceano, queimar na fogueira, explodir junto com as "comunidades", ou metralhar com seletividade constitucional, como disse um presidenciável cujo quepe abduziu a razão.


Entre o enjôo e o delírio, assoberbado pela baixa concatenação entre o que é realidade e o que é ficção, ou entre o que é causa ou efeito no pleito oceânico de esperanças, me envolve uma calmaria semelhante àquelas que levavam as tripulações das caravelas ao desespero e a morte. O típico cenário cuja decantação leva à deriva os princípios da democracia, instiga o autoritarismo como resposta e finca âncora em racionalidades que reforçam a segregação e ocultam o entendimento das correntes oceânicas.


Sem querer e num belo texto, Foucault, em História da Loucura, fala de um tempo em que o senso comum utilizou a lógica do confinamento para embarcar os loucos e leprosos num espaço onde a parte rica da nossa sociedade gostaria de embarcar nossos miseráveis.


"Um objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos”


“Compreende-se melhor agora a curiosa sobrecarga que afeta a navegação dos loucos e que lhe dá sem dúvida seu prestígio. Por um lado, não se deve reduzir a parte de uma eficácia prática incontestável: confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida." (Foucault, História da Loucura, pp. 12-13).


Hoje a semântica do intelectual acadêmico é coisa de esquerda. Algumas pessoas acham que os generais do nosso glorioso exército brasileiro são doutorandos de economia e sociologia, são filósofos iluminados, capazes de levar o homem à lua, julgar samba enredo, administrar uma padaria, transformar o Brasil numa Dinamarca (sem o algo de podre), trazer a paz, a ética e iluminar o sol do Novo Mundo. Isso sem desconsiderar acabar com essa mania de Pablo Vittar.


Por isso militarizar o enfrentamento é uma loucura reversa que ganha a dimensão de muitos blocos de rua ensandecidos, uma espécie de sino em meio a neblina incestuosa que nos arrebata da poltrona e nos salva dos escolhos noticiosos, do próximo trombadinha, da facada ou da pistola com mira laser que ninguém sabe como é que chega, apesar de todo mundo saber como chega.


Por isso o nosso governo, do alto de sua credibilidade balouçante, com a inteligência de argonauta da baía de Guanabara, o brilhantismo de Brancaleone e a premonição de Dom Quixote, ante a sublevação exposta numa faixa pendurada que ameça com os dizeres "(...) o morro vai descer", decreta uma intervenção abstrusa na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro.

Do estaleiro das bruxarias institucionais baixa um decreto que impede de mudar a constituição durante a sua vigência e votar a reforma da previdência. Argumenta que é apenas temporário porque vai ter que cancelá-lo para votar a reforma e depois restaurá-lo, em nome da GLO, Garantia da Lei e da Ordem. Ergue uma rocambolesca "nau sensata" para que os "cidadãos" que pagam impostos possam navegar delirantemente na zona sul do Rio de Janeiro sem ser admoestado. Não confundir GLO com LGBT porque isso pode dar condução coercitiva, prisão sem direito a habeas corpus e delação premiada.


Mas a isso tudo, a água da enchente que chegou na zona oeste como um tsunami, acrescenta e revela a massa obscura de nossos próprios valores: nossa reflexão pífia e marejante não tem como levar embora uma parte cruel da desigualdade, e muito menos, purificá-la. Além do mais, permanecer nessa transitoriedade mórbida da razão entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, perigoso.


Se é para o outro mundo que a gente quer mandar o miserável que nos ameaça em nossa nau alucinada, é do outro mundo que ele chega quando desembarca.

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