Eis algo que não se ousa falar.
Sartre dizia que quando os ricos fazem as guerras são sempre os pobres que morrem. Dano colateral, entretanto, virou tão banal quanto a narrativa de Eichmann em Jerusalem.
Estou meio enfastiado com o choque de narrativas e me sinto a bolinha num jogo de totó verbal, onde o cenário da diplomacia se reveste de uma cavalaria de narrativas circunscritas aos teatros simbióticos dos meios de comunicação que as compram.
Acho que Otto von Bismarck estava errado quando teorizava sobre aquilo que chamamos hoje teoria da dissuasão: "quanto mais fortes somos, menos provável é a guerra". Também era parte de uma afirmativa pitoresca para agradar gregos e troianos, porque tanto belicistas quanto pacifistas acabavam concordando com isso. Assim se vendiam mais armas. Mas Bismarck ou estava erradíssimo ou era um cínico mesmo.
Fred J. Cook em o Estado Militarista, que li há não sei quantos anos, dizia que os homens fizeram as armas de que tinham necessidade e as armas passaram a fazer as guerras que tem necessidade. É um elemento intrínseco da pressão capitalista e produtiva do seu próprio mercado e que precisa se retroalimentar. E o que era complexo-militar se tornou industrial e o que era industrial agora é financeiro e superestrutural na intercessão medular do sul global.
É como se houvesse um cérebro, uma inteligência artificial, insuflando uma razão programática a cobrir o muro ideológico da nossa vida cotidiana, a massa cinzenta que resiste ao colorido das justificativas, com um musgo viçoso de fraseologia decorativa. A arquitetura das noções de democracia é permeada de autoritarismos liberticidas. A tonalidade da palavra "liberdade" esconde o que está por trás do muro. E quanto mais alto o muro, mais parece uma floresta cujo ecossistema desconhecemos.
Quando acredito que já estamos vivendo uma terceira guerra, cujo formato envolve contenção e avanços, ataques narrativos e conflitos interpolares, quero dizer que as ações belicistas já ocorrem nesse teatro de agressões militares e intervenções diplomáticas multi-situacionais. Óbvio que o sul global avança sem revelar as razões por trás do muro e o eixo China-Rússia também avança no xadrez geopolítico. Alianças militares vão se desenrolando entre os bunkers dos grandes empreendedores da guerra enquanto pouco consideramos a hipótese de um apocalipse.
O "apocalipse" em Gaza (é um eufemismo quando "não podemos" chamar de "genocídio" ou "holocausto", os massacres numericamente inferiores porque os sionistas consideram expressões sob monopólio semântico da história judaica), não tem a mesma dimensão de um ataque de drones 99% desmantelado pela coalisão entre Israel, EUA e Reino Unido.
Óbvio que os Persas estão jogando xadrez e os sionistas atirando ovos antes dos bacamartes, dos tanques ou de uma conflagração que obrigue a intervenção dos seus grandes aliados. Todos sabemos que o ataque do Irã foi medido e declarado. Não há analista que discorde que o Irã declarou seu direito de contra-atacar e advertiu Israel a não retaliar, inclusive afirmando que dava como concluída a resposta.
Mas o Estado de Israel não sabe jogar xadrez, não aceita medidas iguais e parece ocultar intenções. Então afirma que respostas haverão.
Enquanto isso, vivemos um intenso caleidoscópio de fatos combinados: no Mar da China a tensão aumenta, a Filipinas sob direção do filho do velho ditador Ferdinando Marcos amplia bases americanas, a pressão da Otan sobre a Russia escala por meio de mais armamentos; a eleição americana dispara os mísseis verborrágicos dos seus candidatos e a islamofobia é decantada nas hostes trumpianas. No Oriente Médio países como Iemen, Jordania, Libano e Síria atuam por entre as frestas do muros, e sobre cadávares, em apoio ao Irã e a Palestina, e o sentimento anti-americano se amplia apesar de contido por correlações de força e razões econômicas.
Mas os movimentos armamentistas e estratégicos de guerra, incluindo as de procuração e híbridas sob nova modelagem, vão definindo os contornos de uma dissuasão, com e entre aspas (maniqueísmo com bandeira de pirata no convés), ultrapassando fronteiras e ampliando-se por meio de acordos militares e chegada de armamentos, bases e operações conjuntas, na Austrália, nas Filipinas e no Japão. É tudo muito grotesco se juntarmos os pontos.
Quem controlaria uma guerra no Golfo Pérsico se Israel atacasse o Irã (se já não está atacando), e que afetaria toda indústria do petróleo e o mercado global? Quem seguraria a Russia se a Siria se envolvesse e fosse atacada? E a China se os avanços sobre Taiwan persistir entre agressões em andamento na disputa territorial de terra e mar que ocorre na região? Até onde vai avançar o grande teatro de operações da Otan sobre as fronteiras geoeconômicas e militares nos diversos polos de conflito mundial?
Não sabemos, mas existe uma convicção tão arrogante quanto a do comandante do Titanic de que sabemos desviar dos icebergs, de que podemos continuar bailando anestesiados pela orquestra que toca atrás dos musgos, tornando a aparente realidade um imaginário.
Acho que imaginamos que todos esses movimentos magmáticos não são reais, são meramente dissuasivos, e que o grande jogo global está sob controle de um establishment imaginário e onipotente. Mas não é verdade. Já estamos vivendo um conflito globalizado. Os garçons desse baile não são confiáveis. E nem mesmo os instrutores de esquis porque até mesmo a Suiça já declarou lado.
Hoje o objetivo da guerra não é mais a paz. E sim a manutenção do equilíbrio econômico dos mainstreans, dos mestres do universo, aqueles que giram as manivelas de um imenso mercado global que envolve o setor financeiro (cérebro), o setor tecnológico (esqueleto) e o setor militar (músculos). As redes sociais, grandes empresas de tecnologias, grandes jornais, mídias eletrônicas e até mesmo os mais inocentes games, inevitavelmente acabam coniventes com as pressões políticas e geoeconômicas de Estado e establishment financeiro, tornando-se braços dos sistemas de inteligência e "segurança nacional".
A "grande" guerra já existe, de forma localizada, em linhas militares financiadas e sustentadas pelas alianças, em linhas industriais sob a forma de monopólios, influência ou sanções, em espaços midiáticos sobrepujados pelas construções de narrativas simbólicas, em disputas territoriais, nacionalistas ou geopolíticas que definem o avanço das alianças. A "grande" guerra existe no âmbito de massacres na Namíbia, sequestros no Senegal ou bombardeios em Gaza sob tutela de inteligência artificial (cuja principal função além de reconhecer rostos é delimitar o quantitativo humano dos efeitos colaterais).
Não é simplesmente uma luta do mal contra o bem, da democracia contra o totalitarismo, da fé contra a razão, ou da liberdade contra a opressão. A compreensão se encontra intramuros. É uma hegemonia que nos atomiza e dá a sensação de que é impossível parar o que sob a forma de um sonho, está além da nossa imaginação.
Comments