No fantástico livro de Laurentino Gomes "Escravidão", há tanta informação surpreendente que não nos damos conta da dimensão de nossa alienação histórica sobre o assunto. Enquanto coletivo, não sentimos correr em nosso sangue a noção de que fomos o maior território escravista do hemisfério ocidental por quase três séculos e meio.
Não sentimos e não temos um laivo de dor em relação ao fato histórico de que durante mais de três séculos e meio o Atlântico foi um grande cemitério de escravos. Ainda na África, segundo o historiador Joseph Miller, entre 40% e 45% dos negros escravizados morriam no trajeto entre as zonas de captura e o litoral. Dos restantes, entre 10% e 15%, morriam no cais à espera do embarque. Outros 10% morriam na travessia e mais 15% nos três primeiros meses de cativeiro em terras brasileiras.
Nossa história está repleta de dor e sofrimento. Laurentino Gomes conta que o uso de mão de obra cativa na Idade Média deu sustentação ao desenvolvimento da Inglaterra, da França, da Espanha, da Rússia, da China e do Japão. Floresceu entre os Incas do Peru e os Astecas do México. Assegurou a prosperidade de Veneza, Gênova e Florença no auge do Renascimento Italiano.
"O filósofo grego Aristóteles era senhor de escravos. Thomas Jefferson, autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, segundo o qual todos os seres humanos nasceriam livres e com direitos iguais, também. Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, herói da Inconfidência Mineira, foi dono de pelo menos seis cativos. O reverendo John Newton, autor de Amazing Grace (Maravilhosa Graça), um dos mais belos hinos evangélicos de todos os tempos, foi capitão de navio negreiro. John Locke, pensador humanista responsável pelo conceito de liberdade na história moderna, era acionista da Royal African Company, criada com o único propósito de traficar escravos. John Brown, da família fundadora da Universidade Brown, na cidade de Providence, Rhode Island, hoje um grande centro norte-americano de estudos da escravidão, era traficante de cativos. No século XIX até os índios Cherokees nos Estados Unidos, tinham plantações de algodão cultivadas por africanos".
Ou seja, existe algo de mórbido na perspectiva que temos de nossa civilização enquanto um progresso que parece não se conectar com o passado. Ou seja, abolimos em parte, os registros históricos que nos oprimiram tanto, tais como a violência da colonização ou o massacre étnico racial por meio da escravização e "morte social" de tribos inteiras habitadas por nossos ancestrais. Renegamos a ideia de que o progresso, de certa forma, tem um viés dramático de dor e exploração humana. Essa noção histórica está distanciada de qualquer exercício de responsabilização.
"Morte social" é um conceito trabalhado pelo sociólogo americano Orlando Patterson que realizou monumentais estudos comparativos em sociedades que a escravidão causou danos estruturais e destruição, onde os cativos são violentamente arrancados do seu habitat, sua casa, língua, religiosidades, ancestralidade, laços familiares e comunitários. Essa ruptura era o que Patterson chamava de desenraizamento ou excomunhão da família e da sua sociedade, até que a mesma viesse a se desintegrar por ver destruída a economia de familiar.
Essa anulação dos fatos passados, seja pela deficiência do ensino, a limitação dos incentivos à produção intelectual e a própria desintegração do fenômeno da transferência da nossa memória histórico familiar, enfraquece nossos alicerces culturais, nosso entendimento estrutural e o sentido crítico dos fatos presentes.
Se antes a perda da identidade original se dava por meio da desproporcional correlação de forças, da invasão territorial, do aliciamento de lideranças e do chicote, hoje a perda se dá por meio de uma massificação midiática e um culturalismo que descarta a preservação e difusão dos registros. O chicote está na servidão voluntária, na assimilação do modelo fake de explicar o que é ética e moralidade.
O que demonstra essa perda de conexão com as verdades históricas é a perda da noção de cidadania que caracteriza nossos tempos e tem impacto avassalador no nosso cotidiano. A realidade econômica, social e política do Brasil reflete a deterioração dos valores que começam em nossa simplória noção de cidadania, de ser parte integrante de uma sociedade cujas crenças e costumes deveriam ser comuns mesmo na diversidade. E que não "morreu socialmente" ainda, apesar de acharcada em seus valores nacionalistas.
Por debaixo de todas as formas anteriores de cativeiro produzido pela escravidão africana está "o nascimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravo", perpetrando a barbárie socioeconômica que tornou os afrodescendentes maioria entre as populações vulneráveis, maioria entre as populações carcerárias, e minoria entre profissionais de alta qualificação, representando menos de 10% dos engenheiros, 11% dos professores de medicina e 21% dos advogados (Ministério do Trabalho, Rais, 2016).
Deixamos os tempos de escravidão pra trás sem saber que os fantasmas da ignorância nos alimentam de insensatez. E a perda da soberania econômica da maioria absoluta da nação, através de um modelo de distribuição de riqueza que alimenta a injustiça, é proporcional à defesa individual dos cidadãos de forma consciente e inalienável da comunidade em que estes se inserem. Ou seja, a busca da felicidade individual em detrimento do coletivo não funciona. É um extermínio da razão porque é a sociedade educativa e pacificada que oferece as melhores condições de progresso.
Por outro lado, a soberania de uma nação faz parte de uma macrofísica de distribuição do poder transnacional, de disputas pelas riquezas territoriais de submissão dos corpos nacionais, como diria Foucault, à disciplina imposta pela forma como se organizam. No topo da pirâmide, as elites econômicas. Mas há uma relação de semelhança entre o modelo escravocrata do passado, que era sustentado pela expansão do Estado para conquistas de mercados, e as sociedades atuais.
Independente das distintas formas de cativeiro, da servidão voluntária ou do regime de trabalho, temos sempre por trás do poder econômico, o imperativo bélico, a diplomacia, a geopolítica e a disputa por território e influência imposta pelos impérios. A escravização sempre será proporcional à perda de soberania representada pelo controle dos ativos estratégicos de um país. Sejam estes instrumentos de dominação ideológica, como os castelos, as muralhas, as igrejas ou as pirâmides; ou os de dominação econômica, os ativos energéticos, commodities, bens de capital, etc.
A produção das formas de controle do capital humano, sua subjugação e funcionalização, sempre estará associada à forma como os diversos mecanismos de coerção atuam, por meios não-pacíficos ou pacíficos. Seja como for, impressiona o fato de que a escravização extraterritorial de outros povos, como se deu no passado, fragmenta o sentimento de pertencimento, a nacionalidade, aliena o indivíduo subjugado de suas crenças e costumes ao destruir a esperança de retorno à sua cultura.
Nos tempos atuais, vemos uma decomposição dos sentimentos nacionais através de uma estranha negação da importância dos ativos econômicos estratégicos como fator de fortalecimento de nossa soberania. O sentimento nacional não percebe a intenção de captura para transbordo e tráfico de recursos, de empresas nacionais de setores como energia, construção pesada, aeronáutica e tecnologia, por transnacionais ávidas de expansão. E grandes empresários brasileiros agem como líderes africanos cúmplices do processo de caça, entregando parte de suas tribos ou tribos inimigas. Pouco importa se é nacional. Interessa mais os ganhos em proporções descomunais, como foi o caso da Vale do Rio Doce.
Estima-se que as campanhas de Julio Cesar na Gália teriam produzido 1 milhão de escravos. Tornaram Roma poderosa e um Estado que se fortalecia ao mesmo tempo que suas construções fabulosas. Posteriormente com a força dos papas.
As campanhas pelo controle das massas numa sociedade republicana, com instrumental democrático deficiente, principalmente por conta da ausência participativa da maioria dos seus membros, envolvem múltiplos dispositivos de gestão. Do modus operandi da superestrutura jurídico política, das redes sociais de comunicação, financeirização da imprensa, hegemonia econômica, política e militar. Mas por trás de tudo tem a consciência de uma nação, os tais valores nacionais, a consciência cidadã, as ideias que atuam ou resistem à decomposição dos alicerces essenciais ao nosso progresso.
Esse é o nó górdio do drama em que estamos vivendo. Falta-nos um pouco de brio, nacionalismo, ideais democráticos, princípios éticos na defesa da liberdade e da diversidade, da economia social, do meio ambiente e da nossa soberania. Falta-nos entender quem realmente é pela liberdade ou é escravocrata. Se podemos confiar em Aristóteles, Thomas Jefferson, Joaquim José da Silva Xavier, ou no reverendo John Newton. Todos os discursos podem ser bonitos. A questão é saber quais são coerentes com o que desejamos para o nosso futuro.
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