“O cristianismo não passa de platonismo para o povo…” (Nietzsche)
Aqui e no mundo todo, em Quixeramobim ou na Antuérpia, extrapolando e Nietzsche, a imprensa, tantas vezes exaltada como um dos pilares da democracia, tornou-se uma espécie de platonismo para as massas.
Para entender melhor o que levei décadas para digerir, Hanna Arendt lembra que o principal impasse da filosofia política de Platão perpassa todas as tentativas de estabelecer uma tirania da razão. Isso porque Platão descobriu num determinado momento, que a verdade, isto é, as verdades que chamamos de auto-evidentes, compelem a mente, e que essa coerção, embora não necessite de nenhuma violência para ser eficaz, é mais forte que a persuasão e a discussão.
Venhamos e convenhamos. A experiência jornalística tem a obrigação de considerar a premissa shakespeariana de que sempre "há mais coisa entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia", o que não é tarefa fácil para a uma imprensa com perfil de shopping center. O que se vê, no entanto, é que a notícia televisiva é sempre rasa como a lagoa de Maricá. Rasa, movediça e primária como aula de alfabetização. É feita de ladainhas, mantras, produção semântica, representação, significação e contrassignificação.
"O problema a respeito da coerção pela razão, contudo, está em que somente a minoria se sujeita a ela, de modo que surge o problema de assegurar com que a maioria, o povo, que constitui em sua própria multiplicidade o organismo político, possa ser submetida à mesma verdade." (O Mito do Inferno em Platão - HA)
A produção de verdades passa necessariamente pela compreensão do mito da caverna de Platão. No mito, homens que, desde o nascimento, estão acorrentados ao fundo de uma caverna. Deste lugar, eles podem ver apenas uma coisa: uma parede. Eles nunca foram capazes de sair e nunca foram capazes de olhar para trás para saber a origem das correntes que os prendem. No entanto, há uma parede atrás deles e, um pouco mais adiante, um incêndio. Entre a parede e o fogo estão homens carregando objetos. Graças ao fogo, as sombras dos objetos são projetadas na parede e os homens acorrentados podem vê-los.
A argumentação de que não há como provar a autenticidade das esquecidas mensagens vazadas pelo Intercept considera exclusivamente a hipótese técnica. Tal como enxergar a realidade através das sombras da caverna. Ou de uma produção cenográfica de luz e sombras. Provavelmente a NSA e o IMF (Tom Cruise e sua Força Missão Impossível) discordariam, já que no mundo de hoje os sistemas de inteligência e aplicativos de espionagem conseguem saber até mesmo qual é a cor do pijama do Presidente e a marca de leite condensado que ele lambe sem que ele precise ligar o iphone 4 dele.
Autênticas ou não, obtidas legalmente ou não, Flamengo ou Vasco, Corinthians ou Palmeiras, ateu ou pentecostal, democrata ou fascista, independente das diferenças de pensamento, a dúvida sobre parcialidade das decisões foi colocada naquele pequeno oratório envidraçado para imagens de santos, ou seja, a berlinda. E na berlinda sob a égide do pensamento crítico, é preciso não ajoelhar para rezar.
Como em Direito prevalece sempre a máxima in dúbio pro réu, seria preciso processar os acontecimentos para que a suposta excrescência possa ser confirmada "laboratorialmente". E isso não ocorreu na época porque a Força Tarefa, acima da lei, apagou todas as mensagens da conta do Telegram e fez predominar entre os senhores flácidos a tese de que é difícil autenticar as mensagens.
Por se considerarem além do bem e do mal, os "intocáveis" não disponibilizaram o acervo de mensagens dos Procuradores da Força Tarefa para que se tornasse "prova" da imparcialidade dos mesmos na condução dos processos da lava jato. Ao permitir a "destruição" das conversas, colocaram-se no direito de questionar a autenticidade das mesmas. Isso, entretanto, expressa um evidente desrespeito para com a legitimidade do que defendem. Soa como mais um escárnio.
Mas isso nos faz entender o porque do "inferno de Platão" e da necessidade de desvendar o mito de que é preciso uma minoria "elitista" para convencer a maioria de que a razão pertence a esta mesma minoria que hoje, de ternos impecáveis e retórica sofisticada, uniformes militares e togas de magistrado, revestem a "verdade" com apelos irresistíveis e publicidade esmagadora, convertendo, através da emoção e da lógica restritiva do que é possível entrever de dentro da caverna, a "verdade" manifesta.
É importante destacar, que antes mesmo que tais vazamentos viessem à tona, já existiam indícios de alinhamento entre o MP de Curitiba, a Polícia Federal, o Juiz e acordos milionários de delação, tais como o denunciado pelo advogado Taclas Duran e que agora é objeto de investigação pela PGR. Uma investigação, a bem da verdade, que emergiu das cinzas do conflito entre o ex-ministro e ex juiz Moro e o Presidente da República, responsável pela nomeação do Procurador Geral.
As tais mensagens que caem hoje no esquecimento da criptografia dos interesses que norteiam nossa justiça, se não são verdadeiras, denotavam a pré-existência de uma brilhante combinação de ações com os fatos, de intenções com as repercussões. A saga discursiva da imprensa assimilando os vazamentos sem questionar enfatizava os aspectos mórbidos das denúncias. O clamor popular daquela época apoiaria qualquer violação ante a revolta. Apoiaria até mesmo a decapitação de petistas em praça pública. E apoiou, retroalimentada por uma imprensa publicista do moralismo e da ética, qualquer excepcionalidade cometida em nome da luta contra corrupção.
Para isso, com o apoio de dois ministros principais do STF, Fachin e Barroso, foi feito uma assepsia na noção constitucional de excepcionalidade.
Passado esse breve período de saculejos provocados pelo Intercept, para uma grande maioria da população, ainda não faz diferença se os processos da lava jato seguiram trâmites anormais. Se até mesmo juristas divergem sobre o que é normal ou anormal em interpretação constitucional, o que dirá o populacho. Pouco importa o conteúdo ou se transgressões foram cometidas de fato, porque entendem que os fins justificam os meios e a leitura objetiva é a de que a força tarefa agiu movida pelos mais altos interesses em defesa da democracia.
As razões éticas, os interesses subjetivos e articulados de setores do judiciário com escritórios especializados, as motivações políticas, partidárias e de cunho ideológico, estão criptografadas na várzea profunda da burocracia, da toga e do poder econômico.
Queiramos ou não, os fatos e acontecimentos da época conseguiram criptografar os interesses de curto e médio prazo que comandaram. A criptografia consistiu em codificar o entendimento de como um processo jurídico-midiático pode influir na macropolítica manipulando verdades e resultados na gestão do que entendemos como estado de direito.
Tanto pelo modo como pelas restrições efetivas de permitir acordos de leniência de curto prazo. Esse modus operandi derrubou as ações da Petrobras, suspendeu os pagamentos das empresas investigadas, desarticulou os grandes contratos de financiamento e garantia integrado com as grandes obras, desmontou a cadeia produtiva de pequenas e médias empresas que atuavam na base dos projetos e acabou por derrubar um cenário econômico que já sofria o desgaste do embate político que se travava.
Nesse cenário, pouco importa para uma grande maioria se é verdade ou mentira que houve uma aliança contra culpados que eram inocentes ou inocentes que eram de fato culpados. Pouco importa porque o que caiu na rede é peixe e todos são culpados até que se prove o contrário. Esse preâmbulo da história que estamos vivendo hoje, envolveu uma dinâmica de farta remuneração de escritórios especializados em delação premiada e quebra das principais empresas que dominavam os setores estratégicos das indústrias que eram as locomotivas do desenvolvimento até o advento da lava jato..
Nesse processo em que milhões perderam emprego, houve uma espantosa transferência de negócios para empresas estrangeiras, mudanças dos modelos de exploração, participação e controle nos setores de infraestrutura, energia e oportunidades público privada, ainda em andamento, a leitura dos fatos continua sendo difícil.
A verdade e a mentira sobre o transcurso jurídico institucional que determinou o "caça às bruxas" que caracterizaram a última década e ainda ecoam em 2020, não submergem dissociadas das consequências e submetem-se ao imperativo criptográfico da moral que transfere ao alheio a exigência de ser ético, promovendo por trás um ludibrio calcado na desfaçatez, no cinismo e na hipocrisia de quem utiliza imoralmente a justiça em nome da democracia.
O que revela o atual estado de "loucura" deste momento em que muitos alucinados buscam estruturas fixas de compreensão da realidade, linguagem e afunilamento moral da sociedade, é o fato de predominar o espírito de que a aparência é mais importante do que a essência, o símbolo que a realidade, o ódio que razão, a manchete que a história, a retórica que o conteúdo.
Não foi à toa que Paulo Freire disse que "não basta saber ler que 'Eva viu a uva'. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho." Esse é o liame a transpor por uma sociedade cuja maioria cognitiva ainda não aprendeu a ler e escrever sua própriahistória.
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