"A essência dos Direitos Humanos é o direito de ter direitos".
Hanna Arendt (Origens do Totalitarismo (1951).
Quando o improvável acontece costumamos chamar de fatalidade. Quando esse improvável deriva de uma ação consciente fica mais difícil atribuir-lhe esse valor. Mas quando o nexo entre o improvável advém de uma realidade impossível de se resolver, pelo menos no plano temporal do que alcança nossa perspectiva sociológica, mais do que uma "fatalidade", tende a parecer uma monstruosidade.
Não existem bons sociólogos atuando na área pública. Nem bons gestores aptos a enfrentar o moinho de violência que devora nossas planícies e nossas colinas. E só reagimos a essa constatação com inconformidade quando despontam formas de violência pouco provável em meio à um cenário impossível de mudar a curto prazo.
O assassinato de três médicos com um quarto médico ferido gravemente num quiosque na Barra da Tijuca foge à explicação lógica, mesmo sendo um deles irmão da Deputada Federal Sâmia Bomfim. Qualquer explicação deriva de um estado de sociopatia coletiva em que nos inserimos sem perceber. Banalização do mal, conformismo e alienação prospectiva. Urge que nos esqueçamos desse fato a curto prazo, por conta da reles importância que damos à nossa saúde mental. Não teorizamos com frieza nem possuímos inteligência emocional para reforçar a arma da crítica ante a crítica das armas.
Fato é que a notícia amanhece como se fosse um gavião sequestrando um passarinho. Dizem que essa é a função do gavião, controlar a superpopulação de roedores e pequenas aves. Sobre este cenário sangrento entendemos que a superpopulação de seres humanizados precisa ser reduzida pra que tudo continue como está. Ou seja, tanto quanto não fazer o dever de casa, sequer estudamos para a prova do dia seguinte.
Entendendo que nos parece ser pouco provável uma vingança indireta contra a Deputada Sâmia ou seu marido, o Deputado Glauber, quando três homens saem de um carro e atiram contra 4 pessoas que estão aleatoriamente sentadas tomando cerveja na orla, eles ou estão num estágio avançado de psicopatia ou sofrem daquela "coisa" inversa que a sociedade sofre, e que Hanna Arendt atribuiu a Adolf Eichmann, que é a banalização do mal. Não são simplesmente "monstros". São apenas os novos burocratas do morticínio aleatório.
Sabe-se lá o que gerou aquela catarse desumana. Se confundiram um alvo que sentava naquela mesa, se estavam drogados demais e resolveram produzir uma cena de video game real, se não foram com a cara de quatro burgueses educados, se algum deles já foi mal cuidado por um ortopedista, ou ainda, se estavam treinando tiro ao alvo em espécimes vivas.
A sociedade nunca se dará por satisfeita porque prender esses indivíduos se traduzirá na simples detenção de seres desprezíveis, sem importância social, alimentados pela ignorância circunspecta da falta de politização de uma comunidade que coloca a culpa sempre no outro, no governo, no vizinho, no país ou na ideologia. Em se tratando de problemas sociais, ninguém se reúne pra nada que consiga reunir mais do que 20 pessoas. Ao contrário de festa, show, baile, casamento, parque de diversão, racha de automóvel, festival de rock ou programa de auditório, discutir e lutar contra violência só junta um montinho de gente. Dá mais gente no enterro das vítimas.
À noite os botequins estarão cheios de gente opinando sobre a tragédia da noite anterior.
Por tão ilógico ou improvável que nos pareça a violência sem explicação do quiosque da Barra, a solução nos parece impossível porque esse tipo de mal é regenerativo na confluência dos fatores causais, ele se reproduz na promiscuidade da pobreza e da desigualdade, na alienação preclusa que envolve a co-reponsabilidade do estado e da sociedade civil na formação de valores.
Eis que estamos historicamente determinados por esse ponto de transição do desenvolvimento, em que não podemos fazer nada, além de esperar que os conflitos sociais produzam uma interlocução maior de valores, em que os antagonismos nos tornem capazes de repensar mudanças que alcancem as raízes efetivas da violência e da ignorância.
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