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Pilha de compartimentos

A CAÇA ÀS BRUXAS E O ESTADO PÓS DEMOCRÁTICO


“A verdade e a mentira são construções que decorrem da vida no rebanho e da linguagem que lhe corresponde. O homem do rebanho chama de verdade aquilo que o conserva no rebanho e chama de mentira aquilo que o ameaça ou exclui do rebanho. [...] Portanto, em primeiro lugar, a verdade é a verdade do rebanho.” Nietzsche


Lá pelos idos do século XVII a caça às bruxas levou à morte na fogueira e outros tipos de suplício medieval centenas de milhares de mulheres. Mesmo sendo definido como uma perseguição religiosa feita por protestantes contra práticas consideradas pagãs, ritos mágicos ou a crença em poções, é sempre interessante pesquisar a conveniência de razões conspiratórias.


O famoso Malleus Maleficarum, ou Martelo das Feiticeiras, manual da inquisição elaborado pelo inquisidor Heinrich Kraemer, que os historiadores contestam ter sido aprovado pela Igreja Católica, é por demais instigante enquanto sistematização do método de interpretar, diagnosticar e punir as bruxas da idade média. Mesmo tendo sido proibido posteriormente e inserido no Index Librorum Prohibitorum, o livro tornou-se manual para os tribunais seculares da Europa renascentista.


Nos tempos atuais passamos a utilizar a expressão “caça às bruxas” como um fenômeno promovido pelo Estado e apoiado direta ou indiretamente, pelos meios de comunicação com a adesão de grande parte dos setores médios da sociedade. Esses últimos acabam operando como formadores de opinião do pensamento conservador, oferecendo "legitimidade moral" à ações desmedidas do judiciário em nome da ética.


Num artigo cujo título era "A Caça às Bruxas: uma interpretação feminista”, a doutoranda em Ciências Jurídicas da Universidade de Osnabrück, Rosângela Angelin, associa as mortes de mulheres acusadas por bruxaria durante o período medieval a um verdadeiro genocídio contra o sexo feminino com a finalidade de manter o poder da Igreja e punir as mulheres que ousavam manifestar seus conhecimentos médicos, políticos ou religiosos.


“Existem registros de que, em algumas regiões da Europa a bruxaria era compreendida como uma revolta de camponeses conduzida pelas mulheres. Nesse contexto político, pode-se citar a camponesa Joana D`arc, que aos 17 anos, em 1429, comandou o exército francês, lutando contra a ocupação inglesa. Esta acabou sendo julgada como feiticeira e herege pela Inquisição e queimada na fogueira antes de completar 20 anos. Diante disso, configurava-se a clara intenção da classe dominante em conter um avanço da atuação destas mulheres e em acabar com seu poder na sociedade, a tal ponto que se utilizava meios de simplesmente exterminá-las.”


A sistemática de mobilizar o fervor popular contra a corrupção elevando e sensacionalizando o tom da denúncia desvia a atenção da discussão sobre os reais nascedouros da desigualdade e da opressão econômica. A denúncia que espetaculariza o crime antes do transitado em julgado se acumplicia do Ministério Público na violação do princípio constitucional de presunção de inocência, condena por antecipação, ameaça as garantias individuais e favorece a seletividade da punibilidade.


Quando a opinião pública é instada a odiar líderes políticos e empresariais denunciados por corrupção e a mídia acende um holofote de "caça às bruxas" sobre os personagens denunciados, ao mesmo tempo que inversamente heroiciza membros do MP e juízes de ocasião, atribuindo-lhes poderes excepcionais, aderimos funcionalmente à falsa sensação de que o mal está sendo combatido. E essa é a mais perigosa das ilusões.


No caso brasileiro existem motivos óbvios para entender isso. As pessoas votaram no Bolsonaro achando que estavam combatendo a "corrupção sistêmica de um partido". Tal como acreditar em coelhinho da páscoa depois de adulto, passaram também a achar que a violência se combate com violência, que a universidade é um antro de pelados e marxistas culturais, que Jesus foi visto no pé de uma goiabeira por uma ministra, que os militares iam acabar com o crime, que o Haddad tinha sido um Prefeito pedófilo, que matar um cidadão por engano com 80 tiros é um acidente de trabalho, que filosofia e sociologia não eram fontes de saber fundamental e sim doutrinação comunista, que criança pode ser ensinada em casa e não precisa ir pra escola, que universidade pública não faz pesquisa e não contribui para o desenvolvimento, etc.


Esse festival de devaneios não é uma manifestação onírica de caráter individual, mas um fenômeno coletivo que alcança muita gente. O ódio é um elemento cristalino nesse emaranhado de ideias que nem de medievais podemos chamar. São tão absurdas que algumas pessoas se consideram gênios por achar que as entendem.


Alucinação ou não, fato é que a experiência histórica demonstra que é nos períodos autoritários que se invertem as interpretações de causa e efeito sobre a origem da corrupção e da crise econômica. Por isso que, em meio a crise, o Estado se aproveita das fragilidades institucionais para justificar medidas radicais tais como a venda de ativos públicos estratégicos, o aumento da violência policial nas comunidades, a legitimação do dano colateral nas ações de combate ao tráfico, o aumento de políticas de anistia empresarial isenções tributárias, a flexibilização fiscal sobre as atividades econômicas e a desregulamentação das medidas de proteção ambiental. E sempre os bancos se destacam por aumentar suas margens de lucro.


Assim, através dos séculos, a "caça às bruxas", de certa forma, nunca deixou de ser um instrumento da política e do poder. Apenas assumiu novas configurações favorecendo a internacionalização da economia, acelerada entrega de ativos importantes do setor energético, recrudescimento das ações policiais, aumento do monopólio do capital financeiro e a responsabilização equivocada das origens dos problemas. A crise e a radicalidade das ações de combate à corrupção advém com a seleção dos alvos e a terceirização da responsabilidade. Tudo isso com a finalidade de jogar uma cortina de fumaça na arquitetura do sistema fiscal brasileiro, no modelo de distribuição de renda e de taxação das grandes fortunas.


Quando se trata de países em desenvolvimento, com sistemas republicanos ainda frágeis do ponto de vista constitucional, a retórica do combate à corrupção é convenientemente aderente e respaldada pelo fato de que a grande imprensa tem intrínseca articulação com as elites locais. Também tem fortes vínculos com o pensamento conservador na medida em que seus representantes se originam da classe média. Tal como no judiciário, cujos membros originam-se das classes sociais com mais escolaridade e acesso as instituições privilegiadas de ensino.


Entretanto, a questão ética por trás do enfrentamento da corrupção não se resume a perspectiva crítica que constitui o pensamento conservador. A corrupção não deriva da forma objetiva como se supõe, ou seja, ela não é fruto das organizações criminosas citadas no enunciado dos inquéritos de investigação. A corrupção tem matrizes históricas perpetuadas ao longo dos séculos nos costumes, práticas e modo de pensamento que norteia as relações entre o público e o privado. Ela está profundamente arraigada na base do pensamento conservador da elite brasileira. Expressões como "aos amigos tudo, aos inimigos a lei", "gosto de levar vantagem em tudo" e "quem tem amigo tem tudo", são apenas a ponta de um iceberg ideológico. Corruptor e corrupto nem sempre se percebem.


É também preciso entender que a corrupção é uma característica estruturada por sofisticados mecanismos regulatórios cujo modus operandi é não apenas dos Estados Unidos, mas dos países desenvolvidos em geral. E muitas empresas estrangeiras, consideradas líderes mundiais, principalmente as dos setores petrolíferos, energia, aviação e mineração, com o apoio de seus Estados nacionais, atuam de forma corruptora e pouco ética contra pequenas economias locais, na disputa geopolítica por novos mercados estratégicos.


Recentemente o ministro de Comércio do governo inglês, Greg Hands, revelou que o secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia, Paulo Pedrosa, vinha fazendo lobby no interior do governo brasileiro para as empresas estrangeiras. Nessas transações com o governo brasileiro, uma das prioridades do governo britânico seria o afrouxamento das exigências de conteúdo local na indústria do petróleo.


Rapidamente, sem debate, e através principalmente da MP 795, o governo Temer mudou as regras da tributação, a regulação ambiental e liquidou com as regras de conteúdo local para a indústria de gás e petróleo. Segundo estudos da assessoria econômica da Câmara dos Deputados, somente as isenções fiscais para as petroleiras, irão representar, no longo prazo, algo em torno de R$ 1 trilhão. Somente em 2018 as isenções alcançaram R$ 16,4 bilhões.


“A MP 795 ficou conhecida como a MP da Shell. Esta empresa é uma velha conhecida no setor de petróleo, tendo uma extensa lista de denúncias e processos. A denúncia mais recente em relação à empresa anglo holandesa é de que desviou recursos públicos e pagou propinas durante a compra de um dos maiores campos de petróleo da Nigéria, que foi vendido por US$ 1,3 bilhão, mas apenas US$ 210 milhões chegaram até os cofres públicos. A lista de acusações contra a Shell é longa. Mas na verdade este é o modus operandi não apenas da Shell, mas de todas as grandes petrolíferas do mundo.


O lobby feito recentemente junto ao governo brasileiro e ao Congresso Nacional, visando desmontar as regras de exploração e produção do pré-Sal seguiu a mesma lógica observada no mundo todo. Afinal, o que são alguns milhões de dólares em propina, em face do acesso aos recursos do pré-sal, que pode conter riqueza equivalente a 10 PIB do Brasil? (José Álvaro de Lima Cardoso - Desacato).”


Segundo o professor Luiz Alberto Moniz Bandeira, recentemente falecido, citando o historiador norte-americano John Coatsworth, entre 1898 e 1994, os Estados Unidos patrocinaram 41 golpes de Estado somente na América Latina, o que corresponde à derrubada de um governo a cada 28 meses no espaço de um século. E a palavra de ordem em 90% dos casos sempre foi a mesmo: a luta contra a corrupção, a tirania e a defesa da democracia.


E o curioso é que em quase todos os processos de tomada do poder, seja por meio de golpes constitucionais ou derrubadas violentas de governos, a questão da corrupção é sempre uma bandeira simbólica da linha de frente, aquela que agrega o espírito seletivo de caça às bruxas, e torna-se um dos baluartes dessa justificativa. No nazismo, no fascismo, nas revoluções bolchevique e maoísta, o método foi o mesmo. O mesmo adotado para justificar as excepcionalidades jurídicas, as perseguições políticas, a derrocada dos subsídios culturais e os ataques as instituições de ensino.


André Araújo do Jornal CGN escreveu uma coisa interessante sobre a relação norte americana com a corrupção em outros países.


É preciso ser muito simplório para acreditar que os EUA são um país onde não há corrupção. Na realidade o suposto combate à corrupção FORA DOS EUA tornou-se um grande negócio para os americanos, um grande “business” de ensinar o “compliance”, a cultura de absoluta obediência a regras formais de moralidade, negócio que vai de vento em popa com grandes escritórios de advocacia lucrando na auditoria dessas regras moralistas, indicando inspetores fixos nas empresas apanhadas como corruptas ou então consultorias caríssimas dando aulas para provincianos basbaques com tanta sabedoria da lisura.


Com base nessa pretensa superioridade moral os EUA através de seu Departamento de Justiça, lançou sobre o planeta uma grande rede de pesca de ilícitos sobre os quais os Estados Unidos cobram pedágio através de multas e indenizações, tornando-se assim “sócios” de toda corrupção que acontece no planeta.


Estendem essa rede sob o pretexto de que os corruptos e corruptores usaram o dólar como moeda ou usaram o sistema bancário americano ou, se não acharem nada que os ligue aos EUA, porque usaram a internet, que é uma rede baseada nos EUA. Procuram um liame com os EUA para justificar um processo no Departamento de Justiça e assim cobrar uma indenização muitas vezes maior que o valor da propina, um negócio formidável.


Nem todos os países aceitam essa chantagem explícita, alguns onde há uma secular cultura de corrupção, como Rússia, China e Índia, o Departamento de Justiça nem tenta pescar porque serão rechaçados.


Pode até parecer teoria da conspiração, mas que é uma tese interessante não há dúvida. Até porque empresas americanas articuladas a empresas de fachadas são operadoras de mecanismos seculares de propina em todo oriente médio e nas eventuais guerras "em defesa da liberdade dos oprimidos".


De qualquer forma o momento histórico foi tomado por uma imensa e cinzenta nuvem autoritária e que se abate sobre as instituições e a sociedade como um todo. Todas as ações persecutórias, de cortes de financiamentos e de autoritarismos contra as universidades são apenas uma parte do tsunami ideológico que afronta todas as áreas do governo. E os argumentos são iguais em todos os países da America latina que estão sendo confrontados pela pressão das políticas neoliberais.


Em Salem nos EUA, segundo Alex Woolf no livro Feitiçaria em Salem, numa noite de outubro de 1692, a superstição mesclada ao medo da bruxaria gerou pânico e disputado litígio público durante cerca de um ano, durante o qual vinte pessoas, na sua maioria mulheres, foram declaradas culpadas de realizar bruxaria e executadas. Muitas morreram de acordo com o bárbaro costume medieval de comprimir a vítima por rochas com uma tábua sobre o corpo, até sua morte, o que durava três dias. Foram presas cerca de cento e cinquenta pessoas.


Rubens Casara, juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) sustenta no livro “Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis”, limites e constrangimentos democráticos tornaram-se fatores de instabilidade para o mercado, razão pela qual, em nome da manutenção da ordem, precisam ser ‘relativizados’ ou descartados.


A razão neoliberal é mais bem articulada geopoliticamente do que qualquer governo. Ela atua instalando uma nova percepção acerca dos direitos e garantias fundamentais. Antes, esses direitos eram vistos como obstáculos ao arbítrio e aos abusos de poder, como limites intransponíveis ao surgimento de um novo Auschwitz. Agora, esses mesmos direitos e garantias, construídos como limites da democracia moderna, passaram a ser percebidos como óbices ao à eficiência repressiva do Estado, à “luta contra a corrupção”.


Nesse cenário, qualquer pessoa que questione ou resista aos ditos imperativos morais de um sistema de justiça que viola quaisquer das tradicionais garantias fundamentais, é atacado e criminalizado. Se for uma figura pública corre o risco de não poder andar livremente pelas ruas, pegar um avião ou participar de eventos.


Num país em que, como disse muito bem Rubem Casara, a pós-democracia instaurou-se docilmente, o “caça às bruxas” é tanto um fenômeno sócio-político coordenado pela mídia quanto a face maquiada da barbárie que começa numa conversa de bar e pode ser converter num linchamento.



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