top of page
Pilha de compartimentos

Sons do Silêncio

ree

Há um silêncio que mora dentro do todo que ausculto. O mesmo de que se convenciona numa sala de espera enquanto outros conversam, a recatada celeuma de museu, a seção de filosofia de uma biblioteca, um emoticon meditando no tapete de ioga da consensualidade trivial.


O que percebo ao ouvir o alheio é a mesma coisa estranha e cercada de sensações indizíveis, o intervalo entre dois estampidos, a pausa que separa a queda das reflexões imaginárias e o impacto da falta de oxigênio quando não entendo o que "ouço", tal como o ar rarefeito depois que um míssil fala a sua sílaba surda em um hospital.


O que resta do que li em Sartre há mais de 30 anos, em As Palavras e as Coisas, foi que passei a minha vida tentando acender um fósforo no vento. Que existe uma diferença entre dizer “o silêncio que se segue ao tiro” e ouvir, de fato, a vibração do metal, o ossudo estrondo, o tremor que fica nas telhas e nas costelas. A palavra “silêncio”, assim colocada entre o barulho e a nossa boa consciência, é uma cortina; atrás dela, a poeira não assenta.


Quando criei essa revista eletrônica e a denominei "Nova Crítica", eu tinha a ilusão do criticismo filosófico, da liberdade poética, do me eximir dos barulhos e excesso de normopatias que me incomodavam. Não era a dinamite de Nietzsche, mas um barulho silencioso em forma de ânsia. A ideia de produzir um texto transversal que pudesse significar algo novo na busca de um entendimento que fosse revelador. O barulho ainda persiste. Agora, 30 anos depois, são os algoritmos que assoviam o hino da neutralidade.


Tem uma corrente ideológica em ascensão que nos parece tão óbvia que não vou nomeá-la. Sua gramática é simples: oferecer ruído como se fosse senso comum, dar ao pânico uma farda de segurança enquanto grande parte de nós acolhe em seu próprio barulho libidinoso uma ideia de silêncio: faz detox de notícias falsas, abraça a harmonia de uma playlist moral dissonante e encaverna-se num miasma do mito platônico. Enquanto isso, a chuva "real" cai e não é de água.


Existe, portanto, um outro tipo de silêncio: o silêncio protocolar, a liturgia diplomática de quem diz “tomamos nota” enquanto a nota, sem tom, se dissolve num rodapé. Aqui também funciona o mecanismo sartreano: chamamos de silêncio aquilo que é apenas a pausa teatral antes de mais pólvora. A palavra “cessar-fogo” se repete até que seu eco não signifique mais do que uma janela piscando no navegador. E o que acontece à noite aconchega-se no silêncio da desinformação, não se imagina


As mortes na Palestina estão aí, não como números mas como poeira que entra no pulmão do século árabe e o faz tossir. Não é que não ouvimos; é que aprendemos a nomear o não-ouvir. Fazemos do silêncio um paper, uma faixa preta no avatar, um rito. E, no entanto, qualquer criança amputada sabe que o silêncio não é um valor: é um intervalo com agenda. Primeiro a sirene, depois o abismo; entre eles, uns segundos que cabem numa vida. A ideia do silêncio, como a vendemos a nós mesmos, é acolchoada; o silêncio que as pessoas vivem é pontiagudo. Sartre sorri amargo: escrever “barulho de canhão” não protege tímpano algum.


Gramsci, por sua vez, escrevia que a ideologia não é apenas um conjunto de ideias; é o cimento que liga as coisas, o senso comum que escorre pela parede e endurece na forma do mundo. A “resiliência” da classe média, essa palavra que já foi virtude e agora me lembra travesseiro ortopédico, é, muitas vezes, um modo de endurecer na forma daquilo que nos atravessa. Resiliência alienante: voltar à forma de antes como se antes fosse o paraíso e a elasticidade, uma vida ética. “Seguimos”, “tocamos em frente”, “cada um com seus problemas”, são slogans de um silêncio "necessário" para não sermos esmagados pela pauta hegemônica do dia a dia. Somos peculiares, somos os que colocam o guardanapo no colo antes de ignorar a fome. A classe média, fatigada, faz do mundo um condomínio: portaria 24h, regras claras no grupo de mensagens, pauta de segurança, e, se possível, um paisagismo discreto para não lembrar que há uma avenida cheia de gente do lado de fora.


E como sofremos bem! Sofremos com disciplina principalmente pelo que está ao nosso lado; sofremos pelo que cabe no quadro. Uma criança foi atacada brutalmente por um pitbull essa semana, acontecimento que é tragédia, recebe flores de uma comoção que já tem roteiro, trilha, entrevista com o especialista, foto de álbum. É um sofrimento com manual de uso, o luto com legenda pronta.


Enquanto isso, milhares de crianças morreram em Gaza e outras guerras sem manual; depois morrerão pelos danos colaterais da guerra, falta de água, saneamento destruído, doenças infecciosas, incapacidades hospitales, fome. Seus nomes não chegam à legenda. Não é que sejamos monstros; somos, talvez, pacientes de um arranjo de visibilidade: a ideologia que nos tem, enquanto acreditamos tê-la. Sofre-se pelo que tem janela; pelo que tem latido, e não pelo que tem sirene. A mídia seleciona, nós selecionamos a mídia; e, quando finalmente percebo a diferença entre o latido e o estampido, consola-me escrever “silêncio” para recobrir a falha.


Eu poderia chamar isso de silêncio bélico: aquele que não é ausência de som, mas presença de aspas. Com ele, varremos para debaixo as pedras que doem no caminho. O silêncio bélico é uma espécie de tapete que recobre a sala com a decência possível; recebe visitas, suporta móveis. Raramente, levantamos o tapete; quando o fazemos, o pó nos acusa.


E, no entanto, há outro silêncio, o silêncio fenda, que pede coragem: o de olhar sem rótulo para o intervalo entre a bala e o corpo, entre a ordem e o obedecer, entre a hashtag e o vazio posterior. Esse silêncio não é um spa da consciência; é um corredor de hospital.


Há melancolia em certos sorrisos, eu sei. O comércio aprendeu a vender felicidade com nota fiscal, e nós, precavidos, compramos uma versão trocável. O sorriso que devolve não é alegria, é uma desistência com esmalte. “Está tudo ótimo”, diz alguém no elevador. O tom denuncia: está tudo suportável, que é o modo adulto de capitular. Desistimos com educação, o que torna a desistência quase uma competência. E os otimismos, esses atletas das redes sociais, carregam o músculo do cansaço: todo “think positive” vem com uma massagem póstuma para a esperança.


A indiferença que é dominante, por fim, inventou postura: peito aberto, ombros relaxados, olhar firme de quem sabe o que quer. É uma yoga sem metafísica: apenas respiração ao ritmo da bolsa. Ansiedade e pânico, feitos para ficar dentro, vazam por essa pose; os joelhos não mentem. Observem como, na fila do café, o dedo polegar procura notícias enquanto o queixo finge monumento. A diferença entre a palavra “pânico” e a respiração sutilmente alterada é a mesma que há entre “barulho de canhão” e o canhão. O gesto composto não cura a aflição; oferece-lhe invisibilidade. Chamamos de “centramento” o que é, muitas vezes, isolamento drapejado.


A pergunta que me persegue, e que, talvez, possa perseguir quem me lê, é: o que fazemos com o som do mundo quando o chamamos de silêncio? Quando digo “o silêncio das instituições”, “o silêncio internacional”, “o silêncio cúmplice”, estou colocando uma numeração romana na frente do caos. Meu caderno se organiza, a página respira, eu descanso. Mas as ameaças de confronto não repousam.


A ascensão de uma extrema direita não é “o ruído”; é um engenheiro de som que amplifica a frequência do medo e sussurra que a culpa é do vizinho. Chamar isso tudo de silêncio é, no mínimo, um método de sobrevivência estética. E nós, estetas do desastre, colecionamos pôr-do-sóis enquanto no horizonte queimam armazéns.


Gramsci volta, teimoso, ao centro da página: a hegemonia é pedagógica. Ensina pela repetição, educa pelo hábito. O que chamamos “bom senso”, é o sotaque dessa pedagogia dentro da nossa cabeça. Quando digo “melhor não falar de política no almoço de família”, quando troco “genocídio” por “conflito complexo”, quando substituo “conivência” por “impotência”, o que faço é afinar minha língua com o diapasão da aceitação acrítica. Não é só o medo da discussão; é o desejo de que a mesa permaneça posta. Ideologia, nesse sentido, é a arte de conservar toalhas limpas. Não tem vilões com bigodes: tem guardanapos dobrados em triângulo.


Mas há frestas. Sempre há. O mundo não consegue vedar todas as janelas, e a verdade tem o costume de entrar como vento, mesmo quando não a convidamos. Uma criança morta por um cão invade nossas manhãs porque cabe na moldura; uma criança morta por um míssil bate na janela de noite, sem legenda possível, e, às vezes, entra. Quando entra, lembramos que o silêncio pensável e o silêncio vivido não são a mesma sala. E, se é assim, talvez caiba um gesto: trocar o silêncio-bélico pelo silêncio-fenda, isto é, reconhecer que certas pausas não são descanso, mas a preparação do corpo para correr.


A ironia, eu confesso, é a minha bengala. Apoio-me nela para não tropeçar na solenidade. É com ela que atravesso o noticiário como quem atravessa um campo minado jogando piadas para a frente, torcendo que explodam antes de mim. E, ainda assim, sei que a ironia tem limites éticos: há dores que não aceitam entrelinhas graciosas, há lutos que não toleram trocadilhos. O que me resta, então, é recusar a anestesia da palavra “silêncio” quando ela quer embrulhar o estampido. Dizer “barulho de canhão” não me protege. O que protege é ouvir, nomear o barulho, seguir a vibração até o cano, perguntar quem o limpou, quem comprou a pólvora, quem lucra com o eco.


Sei que é demasiado pedir aos privilegiados que desaprendam a resiliência. A vida é cara, a fila do banco é longa, o telefone toca com cobranças e a cidade é um quebra-cabeça sem tampa. E, no entanto, haveremos de concordar que certa resiliência virou esporte de salão: quem se recompõe mais rápido, quem volta a “ser produtivo” primeiro, quem transforma a tragédia em lição vendável. Essa elasticidade, quando idolatrada, torna-se indiferença com música ambiente. Talvez fosse melhor cultuar outra habilidade: a de permanecer ferido o suficiente para não aceitar o mundo como ele está. Mas até sobre isso tenho dúvidas.


Volto a Sartre: há uma honestidade em admitir o som, em não terceirizar ao substantivo “silêncio” a tarefa de nos poupar. Quando escrevo “o silêncio após o disparo”, escondo o tremor do mosaico noticioso. Quando digo “estamos em luto”, às vezes economizo o nome de quem não tive coragem de aprender. Quando leio “crise”, economizo o rosto daquele diplomata que, por sua representação ideocrática, adota a linguagem que não fere. A linguagem neutra tem suas virtudes, mas ela também é uma arquitetura de distância. Gramsci, de novo, levanta o dedo: a neutralidade como forma de hegemonia, o zelo técnico como colchão ideológico.


Mas não quero terminar com uma lista de culpas. Quero terminar com um uso: o da palavra como chaga, e não como curativo. o silêncio deve ser visto como é: coisa material, intervalo violento, espaço-tempo onde se rearticulam os poderes. Quando alguém disser “o silêncio internacional”, perguntemos: quem apertou o mute? Quando ouvirmos “o silêncio da sociedade”, notemos as vozes que foram baixadas no mixer. Quando repetirmos “silêncio respeitoso”, examinemos a quem ele respeita. O silêncio pode ser piedade; pode ser ameaça; pode ser marketing. Em todos os casos, não é inocente.


E se, em lugar de “silêncio”, experimentarmos nomes que falem do som? O estalo que não chega ao ouvido mas queima a retina, o grave do drone, a síncope das sirenes, o chiado do feed rolando logo cedo, a vibração dos dedos quando o link nos chama, a arritmia das manchetes, o ruído do caixa eletrônico. Talvez, ao nomear, encurtemos a distância entre ideia e coisa. Talvez, escutando o que evitamos, façamos do nosso ouvido um pequeno lugar não-hegemônico. Não um tribunal da moral, não um monastério de purezas; apenas um ouvido não domesticado.


Saber não nos absolve. Sofrer também não. Mas há graus de atenção que mudam os contornos do mundo, nem que seja milimetricamente. E, quando um milímetro decide o alcance do estilhaço, já não é pouco. O silêncio que precisamos, se é que precisamos de algum, é aquele que permite ouvir. Não o silêncio-tapete que apaga vestígios, nem o silêncio-canal que transporta pacotes de conveniência, mas o silêncio-oficina, onde os ruídos são estudados até que suas causas apareçam.


Se escrever me salva de algo, é da preguiça de aceitar a palavra “silêncio” como desculpa. Escrevo para ouvir melhor, o que é uma contradição que me incentiva a buscar novas críticas. Enquanto escrevo, o mundo continua barulhento. Eu ajusto o volume e, por um segundo, penso: talvez haja um intervalo em que possamos escolher. Entre o estampido e a palavra “silêncio”, há um respiro. Nele, a ideologia tenta nos dobrar como guardanapo. Talvez, nesse mesmo respiro, possamos desdobrar o tecido, alisá-lo sobre a mesa, sujá-lo de realidade e, quem sabe, comer juntos. Porque só assim a linguagem deixa de ser mera cortina e volta a ser janela. E, do lado de fora, quem sabe amanhece.

 
 
 

1 comentário


fernandopassoni
há um dia

Texto profundo, um verdadeiro convite à escuta real — aquela que incomoda, mas também desperta.

Curtir
bottom of page