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Pilha de compartimentos

VADE RETRO SATANÁS!

por Sylvio Nunes


Seja onde for que busquemos nos informar dos fatos no Brasil nos aproximamos de três vertentes de possibilidades macabras: a primeira seria a circunstância perdoável de que uma parte daqueles que ocupam espaços importantes de poder no Brasil sofre de sérios problemas psiquiátricos; a segunda, imperdoável, está no tsunami de pressões oriundas de setores evangélicos fanáticos que ameaçam desconverter o laicisismo do Estado e ocupar as altas cúpulas do judiciário, se já não bastasse a invasão do nosso capitólio pela famigerada bancada BBB. E a terceira, seria de ordem criminal, ou seja, enfrentar o crime de tipificação difícil que é a idiotice convertida em ideologia de massas.


Essa última possibilidade enfrenta o problema de ter que separar um gigantesco joio de um gigantesco trigo, os insanos dos imbecis, o que seria uma tarefa somente para Jesus Cristo, caso ele vença a batalha contra o André Mendonça e seus séquitos. Terá ainda que enfrentar biblianos, instrutores de tiros cristãos e parlamentares fazendeiros. Há uma congregação cristã que professa além do limiar da fé.


Para melhor esclarecer, essa "bancadona" de interesses aglomerados, vulgarmente denominada de bancada BBB, ou "bíblia-bala-boi", anda de chifres, armas e crucifixos dados no Congresso, e mãos desatadas nas hostes das disputas orçamentárias, onde se dão os cultuados "toma-lá-dá-cá", outra forma de dízimo. Esse moedismo, atributo inveterado da baixa política, que antes dava ojeriza aos camisas amarelas, agora dá passeatas de apoio contra o uso de máscaras.


Não é muito fácil ser feliz e pensar ao mesmo tempo. Saber ler e entender o que se lê torna mais difícil ainda oxigenar-se de esperança. Ouvir a pregação em defesa da "ameaça à liberdade de culto", dos amicus curiae ontem no STF, aliada ao discurso nauseante do advogado geral da União André Mendonça e do Procurador Geral da República, ambos candidatos a futuras vagas no Supremo, requer um vomitório. Nomeá-los já é difícil.


Diz-se que a função histórica do amicus curiae é chamar a atenção da corte para fatos ou circunstâncias que poderiam não ser notados. Mas o que se nota no afinco nauseante dos nauseabundos engravatados, ao defender o direito do diabo trabalhar, é mais do que uma visão ideológica ou religiosa. Não é a defesa do culto e sim um ato de incentivo a que cristãos não atuem na proteção de outros "filhos de Deus".


Essa evocação tem duas razões possíveis: os sujeitos creem verdadeiramente que estão imunizados pela fé quando aglomerados nos templos; ou, as perdas financeiras decorrentes da queda na arrecadação das igrejas ameaça o poder político de muita gente.


O livre arbítrio defendido na tribuna é o proselitismo da invulnerabilidade de quem tem fé ante qualquer pandemia, ou seja, Deus vacinaria apenas quem crê absolutamente nele. Deus seria uma espécie de Sinovac e estaria disponível nos cultos, uma AstraZeneca que unge seus adeptos dizimistas.


A perspectiva ideológica que desvaticina todo e qualquer mal que a ciência preveja, pode não congregar corrupção, mas congrega submissão, voto e receita. E congrega também as consequências do que os cristãos costumar chamar de maléficas ou diabólicas. É só fazer as contas e ver as estatísticas.


Muitas das mortes por Covid ou outras doenças graves, que ocorrem por falta de assistência num país com a existência de uma gigantesca máquina de saúde pública como o SUS, já derivam da falsa confiança de que Deus salvará, seja através de um médium ou um pastor fervoroso. E isso não é só no Brasil. A diferença é de que aqui se deseja utilizar a máquina do Estado para difundir que a presença de Deus é oniterapêutica.


Uma das explicações é a de que a ocorrência de desistir de um tratamento em troca da atenção divina se baseia numa leitura literal de um versículo do Evangelho de Mateus (10:8), em que Jesus promete a seus discípulos o poder de curar os doentes, ressuscitar os mortos e expulsar demônios.


Lembro de uma matéria jornalística que conta sobre uma menina americana de 11 anos, Madeleine Kara Neumann, diabética, que morreu em 2008 enquanto seus pais rezavam para que fosse curada, recusando-se a levá-la a um hospital. A garota teria agonizado ao longo de um mês, enquanto os pais esperavam que suas preces fossem ouvidas. O pai, Dale Neumann, depois declarou à Justiça que se levasse a filha a um hospital, “estaria pondo o médico acima de Deus”.


No caso específico do debate que se trava atualmente no Supremo, um grupo de políticos religiosos, todos líderes e representantes evangélicos, atuam contrários às recomendações dadas por cientistas, médicos e organizações sanitárias do mundo todo. Aceitam a máscara, concordam com as normas de distanciamento, vão tomar a vacina, mas não aceitam deixar de ficar juntinho nos templos. O aglomeradinho espiritual eleva e protege.


Na verdade, os discursos dos amicus curiae podem estar invocando sem saber a possibilidade meio satânica de contaminação do vírus ao distorcer os princípios constitucionais de defesa da liberdade religiosa. Como se uma restrição temporária impedisse as pessoas de orar em casa ou se reunir pela Internet. Ou mesmo assistir programas religiosos na TV aberta que hoje se tornaram maioria absoluta.


Já no século 17, Spinoza e Locke procuravam encontrar uma alternativa ao fanatismo religioso. Estabeleceram fundamentos teóricos para a prática da tolerância, em vez do uso da força bruta contra o que cada igreja considerava herege. A consequência das formulações de Locke sobre a tolerância, foi a separação entre Igreja e Estado que veio a tornar-se a regra em quase todo mundo contemporâneo, à exceção de muitos países islâmicos onde predomina o fanatismo religioso. Agora, em pleno século XXI, trava-se uma luta contra a intolerância que perpassa discussões chaves da liberdade de expressão, a ciência e a cultura. O conceito de "diversidade" passa a ser atacado, a ciência negada e as instituições jurídicas fragilizadas por excepcionalidades em nome de princípios que afrontam o Estado de Direito.


Ainda resta, em meio ao confuso cenário de discordância sobre temas políticos e realidade, espaço para racionalização, tolerância e debate. Mas demos muitos passos atrás e agora precisamos decidir sobre como resistir à cepa autoritária que assume uma grande parte dos espaços democráticos para agir nas sombras, impor um confronto ideológico e resistir a multipolaridade econômica do mundo globalizado.


Preconceitos, negacionismos, crise sanitária, desemprego, criminalidade, violência policial e perspectivas pessimistas para superar o momento econômico atual. Claro que todos esses fatores acompanhavam governos anteriores, mas não com tanta radicalidade. Imaginam esses profetas, que se transformarmos o Brasil numa República-Templo, uma República Brasileira Assembleística do Reino de Deus, estaríamos automaticamente imunizados. Nem o Trump pensou nisso. A Damares já sabia. Aliás, sabia até que em pé de goiabeira não se pega Covid.


Por mais que se rebusque o discurso, que se tergiverse com auréolas de falso juridiquês, o que se debate no Supremo com esse pessoal de Marte, a "defesa da liberdade religiosa, é uma controvérsia política de caráter ideológico. Representa os interesses econômicos envolvidos pelas perdas decorrentes das igrejas evangélicas. Não é uma discussão cujo interesse seja esclarecer ou se contrapor à legitimidade científica do distanciamento. Não é uma defesa do temor que o fiel se suicide ou morra de fome por falta da inspiração aglomerante da fé. É uma reles defesa do dízimo. Defesa que os cristão deveriam investigar se de fato é pelo fiel, pelo Pastor, pelo Bispo, pelo Deputado, pelo Senador, por Deus ou pelo Diabo.


Daí chegaremos a alguma explicação por que tanto fervor nos discursos repetidos na tribuna.


“Nenhuma opinião deve ser defendida com fervor (…) O fervor apenas se faz necessário quando se trata de manter uma opinião que é duvidosa ou demonstravelmente falsa.” — Bertrand Russell





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