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Pilha de compartimentos

Manual de Zoneamento

Há quem diga que a história se move em espirais. Ilan Pappé chamaria de “história dos vencedores escrita nos cadastros do solo”; Foucault, mais seco, chamaria de "governamentalidade": o poder que cadastra, mede, nomeia e só então bombardeia. Em Gaza, o cadastro virou cratera. A “guerra ao terror” reestreia como manual de zoneamento: primeiro delimita-se “áreas seguras”, depois desloca-se a população para dentro delas, depois redefine-se “seguro”. A racionalidade é geométrica, mas o resultado é carne. E as medidas “provisórias” do tribunal internacional soam como sirene distante — reconhecem risco plausível de genocídio e ordenam conter a fúria do Estado, sem, contudo, travá-la. O papel, de novo, tem menos blindagem do que o aço.


O que se vende como reação necessária ao ataque brutal do Hamas — que matou cerca de 1.200 pessoas em 7 de outubro de 2023, um crime incontornável — converte-se, na prática, em licença para um urbanismo de ruína em Gaza. Contagens apoiadas por agências da ONU e monitoramentos independentes acumulam dezenas de milhares de mortos palestinos e uma sociologia inteira em migração forçada, com fome documentada e hospitais pulverizados. Mulheres e crianças compõem uma fração catastrófica das vítimas, e isso não é “efeito colateral inevitável”: é consequência previsível de uma doutrina que admite “assassinatos preventivos” em densidade urbana extrema e bloqueio de socorro. A gramática do terror é recursiva; o terror do Estado amplia o terror dos grupos que promete extinguir.


Aqui vai um quadro rápido que pesquisei por alto para ordenar minha memória, com foco em números e fontes primárias (ONU/OMS/UNICEF/MSF) e em seguida notas curtas sobre padrões observados:


Mortes totais (Gaza) — A ONU (OCHA) reporta, com base no Ministério da Saúde de Gaza (MoH), algo próximo de 4.656 mortos e 163.503 feridos desde 7 out. 2023 até 10 set. 2025. Estes totais variam a cada atualização; o OCHA ressalta que os desagregados por sexo/idade se baseiam em listas verificadas até 31 jul. 2025.


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Crianças mortas — A UNICEF estima >16.800 crianças mortas até 31 mai. 2025; mais de 50 mil crianças mortas ou feridas desde 2023. Atualizações pontuais no início de 2025 mostraram centenas de mortes infantis em poucos dias após a quebra de cessar-fogo.


A ONU Mulheres estima >28.000 mulheres e meninas mortas desde out. 2023. Esse quantitativo sugere uma seletividade difícil de caracterizar plenamente porque o acesso de observadores internacionais é de alto risco e vedado pelas forças israelenses que já exemplificaram esse padrão com a morte de jornalistas, médicos e voluntários internacionais que participam de ações humanitárias.


A OMS registra mais de 1.400 ataques a cuidados de saúde no território ocupado desde out. 2023 (sendo 376 em Gaza entre jan. 2024 e fev. 2025), com hospitais fechando ou operando muito além da capacidade; relatórios de setembro de 2025 falam em instalações funcionando a cerca de 300% da capacidade e 94% de hospitais danificados ou destruídos.


O MSF (Médicos Sem Fronteiras) documenta influxos massivos de feridos por arma de fogo (incluindo mulheres e crianças) em pontos de distribuição de alimentos, com 1.380 vítimas em 7 semanas (jun–jul/2025), e denuncia “orquestração de matança” nesses locais; também destaca colapso hospitalar e ataques a equipes e estruturas. Também relata centenas de feridos por arma de fogo em curtos períodos, inclusive crianças, em filas de ajuda. Li recentemente uma entrevista do Dr. Nick Maynard relatando tiros deliberados em civis, inclusive meninos com ferimentos nos testículos, especialmente ao redor de pontos de distribuição de ajuda; há ampla cobertura jornalística e pedidos de investigação que encontra obstáculos de alto risco porque são monitorados pelos serviços de inteligência de guerra.


A ONU? Um palco onde se fala alto e se decide pouco. Resoluções de cessar-fogo vetadas, relatórios empilhados como entulho burocrático, enquanto, na prática, Estados membros financiam e armam o conflito que lamentam à tribuna. É difícil não notar que o sistema multilateral se foi tornando um museu de boas intenções — com placas explicativas e vitrines quebradas.


Nesse cenário, as palavras de Bezalel Smotrich — ministro das Finanças e comissário extraoficial das fronteiras ideológicas — funcionam como radiografia da política territorial. Sua defesa reiterada de “emigração voluntária” de gazenses e a aposta em expandir assentamentos “enterrando a ideia de um Estado palestino” deixam pouco espaço para rodeios filosóficos: é engenharia demográfica apoiada por engenharia civil. O pacote “imobiliário” não se limita a hipotecas; inclui E1, aquela peça-chave que cola Jerusalém a Ma’ale Adumim e fragmenta contiguidades palestinas, recentemente destravada com milhares de unidades habitacionais. A ironia? Chama-se “planejamento”.


Se Pappé descreveu a “limpeza” como processo, aqui vemos a causalidade nua: território é poder. E quando território é poder, o “terror” vira um adjetivo administrativo: golpeia-se um bairro para “desarticular capacidades”, fecha-se uma passagem para “impor custos”, corta-se água porque “a logística é parte do campo de batalha”. Em paralelo, o circuito empresarial internacional dá sua contribuição: a atualização do banco de dados da ONU listando empresas com envolvimento nas atividades dos assentamentos — de cimento a turismo — revela como o mercado converte o excepcional em rotina. A economia política do check-in: clique para confirmar sua participação.


No tablado doméstico dos EUA, o lobby pró-governo israelense opera com ferramentas perfeitamente legais — contribuições eleitorais, campanhas de mídia, pressão sobre comitês —, e seu peso financeiro recente é amplamente documentado. Isso não é “onipotência oculta”; é a frieza de uma máquina de advocacy que sabe onde apertar para que a roda não pare. A consequência geopolítica é a previsível paralisia do Conselho de Segurança e a blindagem diplomática de uma estratégia militar que já atraiu não apenas medidas da Corte Internacional de Justiça, mas também pedidos e, depois, mandados de prisão do Tribunal Penal Internacional para líderes tanto de Israel como do Hamas. Chamemos isso de simetria jurídica e assimetria material.


“Genocídio” não é um insulto moral; é uma categoria jurídica com elementos específicos (intenção, atos tipificados, grupo protegido). Quando a CIJ diz que há risco plausível, ela está dizendo: a linha do direito está ao alcance dos fatos, e o Estado tem o dever de frear. Isso não absolve crimes do Hamas; amplia o círculo de responsabilidade para incluir um Estado que, por definição, tem meios de conter-se — e escolhe não fazê-lo. Aqui, o foucaultiano “biopoder” encontra seu limite: o soberano que decide quem vive e quem morre também decide o que a lei pode “suportar” antes de se rasgar. Corte Internacional de Justiça


E o que dizer do argumento supostamente inovador da “guerra ao terror 2.0”, que pretende legitimar assassinatos seletivos e cerco prolongado em nome da neutralização de riscos? Ele se sustenta numa ficção de calculabilidade total — como se a morte de uma família hoje fosse uma equação que reduzisse a probabilidade de um atentado amanhã. A experiência histórica na própria região sugere o contrário: para cada túnel desmontado, um subterrâneo político se aprofunda; para cada bairro abatido, um mapa afetivo se radicaliza. A violência preventiva é um investimento de altíssimo risco que costuma render dividendos ao que pretende evitar.


As mulheres e as crianças — sempre lembradas como “as maiores vítimas” — aqui expõem a gramática racializada da segurança: corpos prioritariamente matáveis porque presumidos “misturados ao inimigo”, “escudos humanos”, “externalidades”. O eufemismo “colateral” é a armadura semântica de uma prática que, traduzida a frio, é o abandono da distinção entre combatente e civil. Foucault diria: a exceção virou norma; Pappé lembraria: a norma sempre teve endereço.


No plano internacional, o pêndulo diplomático vem oscilando: de um lado, reconhecimentos adicionais do Estado da Palestina e medidas simbólicas (sanções de entrada, embargos específicos) contra dirigentes israelenses; de outro, a continuidade da logística bélica e a retórica de “apoio incondicional”. A ordem liberal internacional, tão zelosa com regras, revela-se extraordinariamente adaptável quando as regras atrapalham seus aliados. É esse o enfraquecimento da ONU: não por falta de cláusulas, mas por falta de braços políticos que as levantem.


Voltemos, então, à causalidade. O ataque do Hamas foi — e permanece — um crime. Sua instrumentalização como carta branca para reengenharia territorial e punição coletiva é outra coisa: é política de Estado, com custos humanos massivos e estabilidade regional em queda livre. Quando ministros anunciam expansão de assentamentos e esboçam “soluções” demográficas, quando empresas seguem operando em territórios ocupados como se o direito internacional fosse mera sugestão, quando lobbies garantem que o preço político de dizer “basta” continue proibitivo, a espiral acelera. Gaza vira metáfora e ruína ao mesmo tempo.


E ainda, a mais silenciosa e grotesca ação de guerra são os cálculos de danos colaterais efetuados por inteligência artificial treinada pelos parâmetros e objetivos estratégicos do governo israelenses: investigações (+972/Local Call, The Guardian, Le Monde) descrevem uso de sistemas “Lavender”, “Habsora/The Gospel”, “Where’s Daddy”, para gerar alvos e pré-autorizar limites de vítimas civis conforme a “hierarquia” do alvo — prática amplamente criticada por especialistas porque extrapola para o terror a ação do Estado. Principalmente quando configurada por premissas racialistas.


A ironia final e maior é chamar de “segurança” o processo que multiplica caos civil, desumanização de uma população inteira, e ainda, “planificação” ao que esgarça o tecido urbano. “Defesa” ao que destrói abrigo. E chama-se “paz” à pausa necessária apenas para rearmar. A face oculta dessa invasão não está oculta: está documentada, tabelada, financiada — e, sobretudo, vivida. Enquanto a linguagem busca novos nomes, a mídia se perde no mosaico das referências filtradas pelo temor a demonstrar preconceito antissemita, as pessoas na Palestina sem amontoam em buscam água e comida, como corpos desumanizados. E a água, ao contrário dos conceitos, não espera.

 
 
 

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