O funcionário fantasma não é da ópera, nem é um gênio, mas um personagem deformado por uma realidade subterrânea que habita a obsessão logística do poder.
Deriva da potência de quem não se esconde: aquele que conseguiu sua nomeação.
O funcionário fantasma não é bem um Pluft, um fantasminha qualquer. Normalmente é um cara legal, banal, apto a subrepresentar um parlamentar ou Prefeito no seio de uma base eleitoral. Isso quando não é parente.
Quando é um parente, sorrateiramente nomeado para uma mesa no canto cheia de processo empilhados, não é menos pior que o outro ocioso, apenas pária, apenas um querido na rabeira de um sobrenome, nora, genro, primo de 5º grau, afilhado ou congêneres. Deve ter algum tipo de amor no fruto. Um amor que tem que ser ocultado para que o odiemos.
O mais grotesco não é o locupletar individual que forma uma legião de penduricalhos com muitos tipos e subtipos quase inclassificáveis, que decorrem da presteza remunerada do cabismo eleitoral ou da influência consanguínea. Existem os casos de velhas amizades de infância raramente reconhecidas. Qualquer um dos motivos tem o apoio hipócrita que reside no sonho da maioria.
Fato é que o desejo de linchamento só perdoado pelos camaradas e esconde a pérfida inveja do populacho. Pérfida porque é uma traição ao ethos dominante, historicamente arraigado em cenários muito mais longínquos do que os tempos das descobertas e a monarquia brasileira. A culpa vem lá do paleolítico.
Mas o que interessa nessa combinação simbólida entre Pluft, o fantasminha camarada, e o fantasma da ópera de um francês de escrita gótica e novelística, é o paralelo esfíngico de explicações que nos cercam, e fazem de nossa ansiedade violenta por "justiça" um folhetim sem fim. Fazem de Erik, o personagem sem triunfo, um psicopata.
Curiosamente, o tal Erik, Le Fantôme de l'Opéra, tem uma obsessão por Christine, a protagonista, e vagueia com uma paixão muito parecida com o subterrâneo em que ocultamos nossas verdades e nossas deformações, no mesmo obscuro lugar em que reside nossa paixão pelo poder e pela ostentação. Christine assemelha-se a uma representação fantasiosa do povo, porque é humilde e pobre, bela e talentosa, vítima esforçada da circunstância. Christine é concreta e não fantasmagórica, é delicada e talentosa, mas não invulnerável à sedução.
Erik é apenas um "psicopata" que se desumanizou no âmbito de uma paixão. Christine é o verdadeiro poder que não se reconhece. Quando levanta a máscara do fantasma para beijá-lo faz com que se sinta pela primeira vez humano, a ponto de decidir morrer "de amor". Assim "o poder", Christine, mantém-se livre e combina enterrá-lo onde ele não possa se encontrado. Após isso, um bilhete é deixado num jornal local com uma única frase: "Erik está morto". Nesse momento, "o fantasma" se converte no exemplo mais profundo de remissão por amor.
Essa ópera, trasnformada em espetáculo na Brodway, é exibida desde 1986 e já foi visto por mais de 100 milhões de pessoas. Estima-se que já rendeu mais de 5 bilhões de dólares, ou seja, algo em torno de 10% do nosso déficit anual previsto no rombo orçamentário do governo. Uma besteira porque D. Pedro II lidou com déficits muitos maiores. A construção do Vaticano demandou muitos outros. Mas essas são outras histórias que títulos nobiliárquicos e indulgências resolviam.
Nos tempos atuais, o espetáculo da denúncia de fantasmas entre os servidores públicos é uma ópera bufa que percorre o noticiário desalmado. Desalmado porque não há nada de camarada depender de anúncios e comerciais pagos para contar verdades. A informação, tal como a noção histórica dos fatos, depende do mercado à margem do burlesco institucionalizado pela prática política. Depende da inveja, do espanto e da lassidão da chusma para prosperar. Depende portanto, de individualizar o mal e pulverizar a alma do negócio na aldeia global.
Existem fantasmas que ganham mais de R$ 20 mil reais. E os que ganham menos de mil reais. Fantasmas pobres. Em regra ambos são despreparados para dar entrevistas. São protegidos pela família, pelos vizinhos e pelos bairros da cidade. E são odiados pelos vizinhos e os desprivilegiados distantes, os outros, sempre ausentes da noção de que estão na platéia.
Por trás deste imenso processo, uma produção de proporções nacionais que está vicinalmente estruturada nas artérias do conglomerado de estados e municípios, existe uma servidão voluntária a se eximir do discurso implausível. Ao lado da politicagem está também a apoliticagem.
O livro de Etienne de la Boétie tem um intertítulo que é "O contra um". O insensato fantasma é preceptor de suas justificativas porque se esquiva do coletivo para advogar sua submissão por conveniência, ambicionada pelo vizinho, pelo pai do vizinho e pelo filho do vizinho, regiamente aculturado na comensalidade do voto, do tráfico de influência, do favor e do escambo. É o fantasma que consegue uma ambulância, uma vaga no hospital, o caminhão de mudança, um trator, uma vaga na escola, ou, dependendo do grau de amizade, a satisfação de ver o amigo de carro novo, empregado.
Ou seja, já que o Estado está contra mim, e todos estão contra mim, submeter-se à uma servidão que "prospera" o individual não é tão penintecioso assim e tem a vantagem de emponderar a garagem com um belo veículo, a sala com uma tela plana, as férias com selfs internacionais e o fundamental da vida com uma boa indumentária.
Lógico que essa penintenciária de favorecimentos tem muitos pavilhões. Existem aqueles que fingem que trabalham, os que ajudam de alguma forma e os que estão fazendo alguma coisa que nunca terminam. Existem ainda os mamíferos de boa índole em circunstância nutricional, que demandam subsitência mamária. O leite vem da teta burocrática como de uma fonte orgânica. O ethos social constrói um véu apascentador.
Estimo que existam cerca de 7 milhões de servidores ativos, aposentados e pensionistas nos municípios, estados e governo federal. E mais alguns milhões de comissionados que só batem ponto e passam sorrateiros pela coxia, e outros milhões, que repousam inevitavelmente cúmplices, uns que trabalham, outros que apenas existem. E cuja principal tarefa é manter silêncio.
A estrutura do grande aparelho de estado nos oferece representantes que dependem do combustível fóssil dessa fauna humana visível e invisível, precisam carburar indicações e regular a dinâmica líquida (os não fantasmas), e a gasosa (os fantasmas), dessa perpetuidade. Precisam de alguma materaliedade batendo à porta para manter a governabilidade. É um processo necessário nas democracias inerentemente capitalistas.
O grande problema não somos nós, e sim, mais apropriadamente, os outros. Nós apenas nos enfantasmamos de vítimas. Nós apenas nos plutificamos (de Pluft, o fantasminha) na camaradagem.
O grande problema está no corpo físico ausente, na referência plana de uma ária ofertada de forma a subtrair as consequências lógicas de uma encenação em que escondemos a nossa desfiguração (e reconfiguração), para habitar o subterrâneo das impossibilidades, obsessivos e imaginando que amamos o som do espetáculo.
Por isso a maioria apática e silenciosa compra baratos os lugares situados nas galerias inferiores e admiram os que estão no camarote. O preço de estar dentro do teatro é ignorar os de fora. E para isso valer a pena é preciso odiar o fantasma, desejar sua morte em meio à tortura que ele produz, ser solidário ao drama de Christine que num determinado momento aceita ser a "noiva viva" do Erik. Até que a emoção se inverta e Erik demonstre uma faceta humana, morrer "de amor".
Daí o perdoamos, esquecemos seja o que for. Pode ser a criança síria morta na areia da praia ou as vítimas de bombardeio num lugar qualquer do oriente médio. E continuamos a depender de fantasmas para odiar.
Por isso é preciso que existam fantasmas imateriais (haja redundância) na Eletrobrás, na Petrobrás, no Congresso, na Câmara de Vereadores, na Previdência, no barco que naufragou no Xingu, no Complexo do Alemão, na convulsão avassaladora da criminalidade e da governança pública.
É preciso que haja um fantasma na ruptura individual da ética, que esse fantasma seja ele mesmo, que nossa obsessão punitiva o humilhe, o alcance, se desfaça sob a égide normativa do poder. É preciso que haja um nó totalitário preso na nossa garganta para que possamos fazer buuu e assustar a onipresença do mal. Mesmo que não seja essa a resposta.