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Pilha de compartimentos

Relação Premiada


Atribui-se a Antonio Gramsci a anotação de que a crise consiste no fato de que o velho que está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, aparece uma grande variedade de sintomas mórbidos.


Numa carta brilhante, Bauman explica a origem da palavra "interregno", como o período entre reinados, quando um rei morria e outro lhe sucederia. Essa transição sempre gerava expectativas quanto a mudanças na lei e na ordem social. Esse interregnum implicava era um período em que as leis ditadas eram suspensas pelo justitum, enquanto aguardava-se novos éditos a serem proclamados pelo sucessor.


O justitum era a aplicação de um "estado de exceção" porque as leis eram suspensas e o "Estado" tinha de manter uma ordem mínima ante a expectativa de um novo espectro de poder e que contivesse em sua essência a percepção de que esse assuncão do novo monarca era um direito divino.


Gramsci ampliou o sentido da interpretação classica do interregno e deu-lhe um significado que cabe mais apropriadamente em nossa época e no Brasil dos tempos atuais.


"épocas em que a estrutura jurídica de uma ordem social perde sua aderência e não pode continuar a fazer florescer a ordem social (...)."


A intensa movimentação jurídico policial dos tempos atuais, mais do que refletir um esforço institucional de restauração da ordem, pelo modus operandi do comando e pela obsessividade das coberturas jornalísticas, refletem a natureza mórbida da transição e ampliam o antagonismo das massas.


A sucessão de notícias que alternam momentos de impacto e atenuação de escândalos, sempre calcados na tese unilateral da presunção da culpa, servem como atestados aos objetivos de que o combate à corrupção deve continuar a qualquer custo. E o problema não é investigar ou prender alguém que obviamente comete um crime. O problema está no método.


A culpabilização por meio de imagens impõe uma narrativa de "crise" associada à de "interregno", com todos os elementos mórbidos que a perfídia, a manipulação e a insanidade são capazes de produzir num momento de disputas intensas por poder, enfrentamento tático de grupos econômicos e emponderamento de lideranças carreristas do judiciário que passaram para o hall da fama.


É demagogia afirmar que a corrupção mata mais gente que outras formas de violência porque não existe uma medida para calcular a hierarquia de responsabilidades sociais. Quando o instrumental jurídico não funciona per se, e demanda a publicidade da intenção e sua ação, para ganhar a opinião pública, está atribuindo-lhe a força de um déspota esclarecido.


A defesa mil vezes repetida e reafirmada da importância da "delação premiada" como instrumento de enfrentamento maquia a extensão dessa legitimidade, e não expõe os mecanismos internos das negociações e pressões articuladas entre o MP e escritórios de advogados especialistas em delação (que precisam de muito bom trânsito com o MP e controle de suas fases). O advogado tem que preparar a testemunhas, ensaiar, alinhavar o depoimento do delator com o depoimento de outros, e dar o máximo de ênfase para que a sua divulgação promova uma sensação de verdade suficiente para sustentar a condenação.


Isso significa dizer que um cara como Palocci, preso há mais de um ano, pode entregar a mãe junto com a avó para se livrar da cadeia. No caso específico do ex-ministro, os procuradores fizeram que estão de declarar antes do interrogatório que não havia um acordo de delação e que o MP estava conversando. Pela extensão da narrativa, supõe-se que Palocci vai mudar de cela bem mais rápido. Isso porque a força tarefa hoje está munida de um poder extraordinário, capaz de decidir o futuro de um acusado. E não é preciso ligar o que se fala a provas materiais. Basta que o depoimento seja cáustico suficiente para atormentar publicamente a reputação do réu. No caso, o ex-presidente Lula.


Basta ele afirmar que viu, ouviu e sabe tudo, com certeza, sobre todos os fatos que se pretende imputar. E a força tarefa, cujo objetivo derradeiro está claro pela forma como se dão as transmissões ao vivo dos depoimentos, tem que deixar subtender que para avançar num bom, tem que avançar sem piedade sobre seu alvo. Como não existem provas suficientes, cabe-lhe promover um espetáculo de detalhes escabrosos que expostos publicamente tornam qualquer pequena mentira numa verdade indiscutível.


O aspecto mórbido desse grande interregno capitaneado por uma investigação poderosa não são os meandros da corrupção e sua rede complexa. Mas as disputas seletivas dentro do próprio sistema que deu origem a "delação premiada", permitem que ela se articule e se expresse sob quatro métodos de platitude ideológica: ela precisa do escândalo para pressionar a opinião pública, portanto, canal aberto com a mídia; precisa da restrição da liberdade com ameaça de prisão até mesmo de familiares; precisa personalizar seu caráter endêmico para obter apoio dos setores hegemônico; e, por último, precisa consolidar a noção de que ela é a causa e não efeito.

A "delação premiada" reforça e funcionaliza o tecido epitelial da morbidez jurídica e institucional que impera. É um instrumento em ascenção que está se viralizando como método. E as feridas da "crise" econômica e social, reforçam a aparência de que a "delação premiada" é muito mais do que seu efeito atenuador. É um medicamento com efeitos colaterais imprevisível.

É um fortificante de vetor contrário.





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