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O PARADOXO DA INSANIDADE


Alguém, sem exagerar e falando modestamente, com a mais sã e higiênica das razões, em algum momento do nosso apoplético, apoteótico e lisérgico momento histórico, referindo-se à nossa época, disse que estamos na “era da insensatez”.


Aliás não foi um simples "alguém", mas milhares de pessoas que se consideram sob o domínio da razão em contraponto a outros "alguéns" (com o perdão à flor do lácio), o que nos faz supor que o limiar entre razão e loucura não estabelece com razão quem está do lado certo.


Já o filósofo Voltaire, na corrente de querer definir de que lado está o louco, ofereceu uma definição bem cartesiana para quem for louco o suficiente para pensar diferente.


“A loucura (folie) é uma doença do cérebro que impede o homem de pensar e agir como os outros homens fazem. Se ele não pode cuidar de sua propriedade, ele é posto sob tutela; se sua conduta é inaceitável, ele é isolado; se for perigoso, ele é confinado; tornando-se furioso, ele é amarrado”.


Hoje em dia fica muito difícil adotar essa definição porque Presidentes, Ministros, Senadores, Deputados, Juízes e eleitores, tem condutas inaceitáveis à luz do dia e ninguém é confinado por isso. Chamar parlamentar de ladrão e juiz de safado é um paradigma social de orgástica insanidade que adotamos como método depois de ficar de saco cheio da normalidade implícita.


Eu pessoalmente acho que deveríamos criar o Dia de Xingar um Notável, tal como o dia de malhar o Judas, que na minha infância eu achava uma brincadeira muito louca. Mas nada se compara com aqueles momentos de louca correria e ludicidade, com a mais pura verve infantil de vingança e extravasamento, de caçar, malhar e explodir o Judas.


O adorável espancamento de um boneco, em regra parecido com aqueles espantalhos americanos de desenho animado, postos no meio das plantações de milho para espantar os corvos do Hitchicock, era um ato lúdico de supremo alegria. Destacavam-se os meninos que fossem mais "porra loucos", e que, ao final, depois de trucidá-lo, incendiavam o "corpo", tal como o fazem os traficantes na favela.


Mas não é bem isso que se passa em nosso manicômio governamental que, ao ver do Veríssimo, foi tomado pelos loucos e está sem administração. E não deixa de ser uma metáfora sã comparar o governo da nossa nação com uma instituição psiquiátrica.


De certa forma há sempre uma cumplicidade da razão, uma psicopatologia dialética e implícita, a justificar a cumplicidade entre os que estão confinados com aqueles que os puseram lá.


Apesar de nos parecer complexo à primeira vista, um texto de Foucault extrapola muito bem o caráter simbólico e estrutural da alienação como representação e modelo do que nos aparenta ser o “caos”institucionalizado da nossa república bananeira.


"O mundo contemporâneo torna possível a esquizofrenia, não porque seus acontecimentos o tornam inumano e abstrato, mas porque nossa cultura faz do mundo uma leitura tal que o próprio homem não pode mais reconhecer-se aí. Somente o conflito real das condições de existência pode servir de modelo estrutural aos paradoxos do mundo esquizofrênico".


Mas vamos aqui fazer um exercício de suposição ou loucura entre aspas. Imaginemos que não somos simplesmente aquela pessoa andando entre os escombros de uma civilização que foi dizimada por um cataclisma nuclear, não da proporção de eleger um deputado psicopata, o que é muito pior que a certeza de que o universo, a via láctea e outros cosmos, podem desaparecer.


Se não somos aquela pessoa é porque estamos imersos no coletivo, fazemos parte desta sociedade que faz escolhas estranhas na lógica foucaultiana de que a nossa história engendrou um ponto de inflexão cruel. Ou seja, a leitura que fazemos dela impede que uma grande maioria reconheça-se nela. Por isso cala, rumina e acerta o olho quando vai dar lambida num sorvete.


Nesse contexto, a massa de eleitores que elegeu convicta um Napoleão Bonaparte que nasceu em Glicério, estava representando a falta de soberania da razão, que agora se vê louca, enxerga-se aberta ao seu inverso, ao caos, à ignorância. A “nau dos insensatos” aportou no Distrito Federal e tomou de assalto o poder com a nação ignara concedendo ao seu “mito” o poder de marcar sua pegada na lua.


Ao contrário do papel protagonista que o saber representado por nossas, ainda que deficientes, instituições de ensino superior, parecia ter, ele se esgueira dentro das trevas e torna-se um ainda acoado animal. Apesar de nossa razão histórica saber de seus limites, ainda vamos jogar um jogo tenso com a insanidade por muito tempo.


Como aquele limiar que nos permite julgar o que é normal e o que não é, para definir o que é insano, começa a se mover como resultado da transformação que opera a confirmação de que não vamos virar um Canadá ou Miami, o espetáculo da insanidade começa a ser percebido.


Com exceção de muita gente ainda, principalmente das forças policiais no Rio de Janeiro, que estão apertando o gatilho com aquele espírito de liberdade defendida para a Venezuela, o paradoxo da insanidade inicia um longo processo de mudanças estruturantes, cheio de conflitos, Sancho Pança, AR-15, tanques, palanques, violências constitucionais, disputas corporativas e mortalidade infantil.


Ao final, parafraseando o título de uma peça teatral, como sempre fabulosa, de Nelson Rodrigues, toda loucura (ao invés da nudez) será castigada.

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