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Pilha de compartimentos

TSUNAMI


Finalmente encontrei um motivo para voltar a escrever. Uma pandemia global.


O caos e a virulência que hoje torna lúgubre nossas expectativas advém de um iminente tsunami de infectados e mortos em nosso entorno. A vista e os sons que vem de fora da minha cela, onde antes era de tráfego intenso, motores nervosos de ônibus, caminhões, buzinas renitentes de motos, sirenes eventuais e celeuma humana, hoje é de vazio, silêncio e um cenário de walking dead.


As previsões antecipam a sensação de letalidade. Nosso único antidistônico natural é nos convencermos de que a aberração do Trump e o psicopata do Bolsonaro são os maiores especialistas em infectologia que o mundo poderia desejar como tábua de salvação. Essa porra de gaia ciência é um equívoco filosófico engendrado pelas esquerdas mundiais, diriam os weintraubistas. Hoje em dia, em meio ao circo de horrores da idiotia, infecção causada por adeptos do olavismo bolsonarista, o mais fácil é por a culpa nos chineses e no PT.


Eu como sou um cara otimista acho que o que me jogou numa cela vai transformá-la num camarote incomunicável do apocalipse. Um camarote sem abraços, beijos, carinhos ou apertos de mãos, porém repleto de fantasmas bigbrotherianos, aqueles que norteiam a mente dos confinados.


É invejável ser um BBB e poder viver gregariamente. Aquela turminha indesejável e fútil, que já me parece uma multidão, pode ser a esperança de continuidade da raça humana. Muito provavelmente haverão americanos isolados em bunkers antinucleares remanescentes da década de 50, e que não subestimaram a possibilidade de uma guerra total.


Temo que do lado de fora, em meio a um possível colapso econômico pior que o de 1929, uma parte da população resolva exterminar a outra, e depois nos tornaremos o paraíso do gafanhoto, do lagarto e da cobra. Temo que tudo pareça ou torne veraz a pior das teorias de conspiração. Temo que haja uma ação coordenada inconscientemente pela subversão da lógica, fomentando uma nova espécie de ideologia da higienização.


"É rápido como uma sombra, curto com um sonho Breve como um relâmpago na noite fria Que com melancolia revela tanto o céu quanto a terra E antes que o homem consiga dizer "Veja!" Os dentes da noite o devoram. E assim, depressa, tudo o que é luminoso Desaparece em meio à perplexidade."


William Shakespeare


A gente assiste no noticiário hegemônico da TV Globo todos os dias, as entrevistas, as medidas e os acontecimentos. Assiste sem entender uma fila absurda de gente tentando pegar trens, barcas, ônibus, andando a esmo em estações, e multiplicando o potencial de contágio enquanto um Secretário de Transporte oferece respostas patéticas para perguntas patéticas dos repórteres. Todo transporte intermunicipal foi reduzido sem saber fazer um planejamento, sem poder obrigar as pessoas a ficar em casa, sem oferecer uma solução de sobrevivência para quem vive do informal, ou para quem é obrigado a chegar no trabalho pra não ser demitido. Daí caos e contágio. E jornalistas elegantes, fleumáticos e calmos fazendo perguntas banais.


Se alguém planejou isso tudo para exterminar velhos, doentes e pobres, foi genial demais pra perceber que, disseminado o vírus, os governos ajudariam nos seus objetivos. Comparativamente o Unabomber era um oligofrênico perto do autor de tão engenhoso objetivo. Haja visto que grandes homens de negócio, formadores de opinião de grande parte de nossa querida e religiosa classe média, são a prova cabal de que o apocalipse, se de fato vier, terá uma excepcional contribuição.


O dono da rede de restaurantes Madero disse que não se pode parar a economia por causa de 7 mil mortes. Olavo de Carvalho disse que o vírus não existe. O empresário Roberto Justos disse que essa epidemia vai matar somente os velhinhos e doentes, e enfatiza que 12 mil mortes para 7 bilhões de reais é pouco. O famigerado Capitão tentou tomar posse de 200 ventiladores pulmonares comprados pela Prefeitura de Recife. E utiliza seu espaço em rede nacional pra afirmar que o coronavírus é apenas uma gripezinha. Sob alegação de que visava preservar vínculos empregatícios o governo federal edita uma MP de suspensão de salário por 4 meses (que o Ministro Paulo Guedes posteriormente diz que foi um erro de redação).


Em vídeo, a mulher do cantor Zezé di Camargo reclama que o marido está sem trabalho. O pastor Malafaia insiste nos cultos. Ao mesmo tempo favelas do Rio sofrem com falta de água juntamente com a periferia de municípios metropolitanos e população fica mais vulnerável a coronavírus.


Nos EUA os democratas querem forçar Trump a adotar uma lei de 1950 que autoriza o governo a forçar empresas a produzirem equipamentos estratégicos para saúde. Mas os republicanos não querem e há uma divisão de objetivos entre os governadores e o governo federal. Aqui partimos do pressuposto de que não é necessário um esforço de guerra, uma mobilização em escala industrial para lidar com a fragilidade das decisões. É meio que um cada um por si onde meus vizinhos do apartamento em cima do meu, apontados como suspeitos, gritam e batem panelas todas as noites.


Uma parte da classe média esvaziou as prateleiras dos supermercados da Zona Sul, e não sabem que tudo que se faz em proveito próprio e isoladamente amplia os riscos e os problemas. Ou seja, maior rotatividade de produtos, maior manipulação na reposição, maior risco de contágio. Ou seja, no seio de um sistema legitimado como capitalismo, vemos nestas ações, a expressão caricatural do provérbio marxista de que "no capitalismo o homem é o lobo do próprio homem".


E agora, após Bolsonaro autorizar o envio de equipamentos de saúde para a Itália, afrontando a legislação que tornava a proibição de exportação de produtos hospitalares uma medida estratégica face a iminência de escassez, podem os nossos neofascistas bradar nas redes sociais: a Itália somos nós!


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