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Pilha de compartimentos

APLICANDO O EXCLUDENTE DE ILICITUDE

Hoje resolvi aproveitar uma situação interpessoal que classifico como "estado de necessidade", para aplicar o excludente de ilicitude na minha tentativa de assassinar qualquer reflexão sobre o governo federal e quaisquer dos seus personagens abstrusos.


O assunto sobre o qual seria imperativo escrever faleceu vítima da minha pajelança culposa, ou seja, saltei da crônica política para o tédio embrutecido pela realidade. Resolvi apelar para autocura da alienação temporária.


Diz-se que na pajelança o pajé entra em transe identificando o mal que acomete a pessoa que buscou ajuda e prepara medicamentos naturais para o tratamento das enfermidades. Estou em transe diante da impossibilidade de sobreviver ao meu desejo de mergulhar na banalidade e me entregar ao tédio curativo.


Por isso liguei a TV às seis da matina, o melhor método de nada desaprender, de evadir-se do esforço de recortar as camadas do direcionismo que cegam a realidade. A aldeia global exerce um exercício fascinante de ocultamento e aperfeiçoamento da preguiça mental.


Sob o efeito emoliente do telejornalismo matinal, engarrafamento e morte de criança tem variações efêmeras de evocação. Nada mais e menos divertido do que ficar parado tentando achar interessante a informação.


Então observo patético que o helicóptero do canal 4 sobrevoa as vias de acesso ao centro da cidade do Rio de Janeiro e se apropria da realidade relatando um trânsito caótico, vias bloqueadas, acidentes e estagnação. Entre o céu azul e o mergulho da câmera para a linha vermelha, uma estagnação que se move vagarosamente. Sangue estancado. Embolia. Céu azul.


A imagem não é a mesma do dia anterior que se repete, se repete, se repete e se repete diferente todos os dias. Mas a gente acaba mergulhando na mesma piscina azul em que o caos é a normalidade e a normalidade é a repetição do caos. O repórter busca nuances na imagem de hoje, como se o dia de ontem fosse diferente, mesmo que igual.


O estilo de vida de uma cidade grande é uma mentira vital. Tal qual as fotos que os telespectadores mandam para retratar o nascer do sol. Há algo de necessariamente desonesto entre uma natureza passiva, o relato de bloqueios de trânsito em nossas vias degradadas e a consciência de que ficar sentado assistindo isso contribui para nossas artérias.


A cadência jornalística dos telejornais retrata a banalidade medíocre do cotidiano com a mesma majestade que televisiona o carnaval na Sapucaí e os jogos de futebol.


O âncora do telejornal fala sobre uma menina de 5 anos que enfiou um brinquedo no nariz e não consegue atendimento desde meia noite no maior Hospital de emergência do Estado. O dia está ameno porque nas últimas duas semanas algumas crianças foram baleadas e mortas. Até mesmo a altivez indignada do âncora é a mesma e acaba por se perfilar na cadência de uma normalidade que parece uma banda de fanfarra ensaiando nas ruas de nossa província.


Um caso de assédio no trem acaba na delegacia e a jornalista fala com seriedade que isso deixa revoltada qualquer mulher que fica sabendo disso. Aquilo me soa como uma espécie de normopatia que tem o efeito inverso de tolerar que os homens não fiquem indignados. Imediatamente depois o tom de voz da jornalista remodula e uma alegria dosada comunica banho de sol na areia com restrições: tem que usar máscara.


Na medida que o tempo passa as notícias vão se tornando curtas, variadas, e a gravidade dos fatos se perde no tom monocórdio da jornalista. Vamos do Rio ao Ceará, passamos por Londres, e voltamos ao Brasil com uma expressão "por aqui" acontece isso ou aquilo. Um foco de incêndio, um decreto presidencial, uma denúncia de corrupção ou de violência doméstica, tudo continua sobre o fino e plano tecido semiótico de quem se considera responsável por "levar a informação".


O anúncio com volume elevado do Supermercado Guanabara interrompe minhas reflexões com um locutor falando em voz alta o preço de pelo menos uns 30 produtos em alta velocidade. Só me lembro do bacalhau e do suco de uva. Esqueci do resto. É assim que esquecemos.


Não fiz reflexões sobre geopolítica, imersões filosóficas avec Foucault, comentários semióticos me utilizando de alguns recursos de Barthes ou cronifiquei o cotidiano de forma intensiva e crítica com o tradicional viés antigovernista que os tempos atuais requerem. Apenas deixei de "policiar" criticamente a realidade e resolvi, discreto e deliberadamente, assassinar qualquer obrigação de escrever um texto sobre a teocracia miliciana da nova ética institucional da república.


Vou ficando por aqui.

07/07/2020 - Terça-feira













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